Há uma boa novidade no cinema brasileiro recente. A cineasta Petra Costa vem construindo uma obra notável e de rara força interpretativa. Seu olhar é profundamente pessoal e, ao mesmo tempo, voltado para as urgências objetivas do presente. As imagens iluminam zonas obscuras do que ainda se pode chamar de vida nacional, num gesto que lembra a frase de Goethe tão cara a Theodor Adorno: “Destinado a ver o iluminado, não a luz”. O iluminado, no caso, são os objetos políticos do país.
O filme mais recente, “Apocalipse nos Trópicos” (Netflix), carrega um título de mil sentidos, que vai do senso imediato de um “fim de época” ao mais profundo de um momento de revelação. A diretora retorna a Brasília, centro do poder político, depois da investida de “Democracia em Vertigem” (2019) — obra que lhe valeu indicação ao Oscar de melhor documentário.
Se, no primeiro filme, a investigação recaiu sobre o impeachment de Dilma Rousseff e a crise institucional, agora o foco está no avanço de uma utopia teológica no país. O fio condutor é sempre a voz de Petra, narradora e organizadora das imagens que se sucedem.
Uma sobra de gravação de “Democracia em Vertigem”, apenas compreensível anos depois, abre o novo filme. No Congresso Nacional, um grupo se reúne com um deputado para uma oração. O espaço do debate público e republicano se transforma em cenário litúrgico. A oração pede a Deus que guie o país, mas também afirma, de maneira sutil, a fusão entre fé religiosa e projeto político.
Entre os personagens que ganham destaque do novo filme, está o pastor Silas Malafaia. Alguns críticos viram nele uma presença desproporcional, sugerindo que não representa o todo da questão da relação entre religião e política. Ainda assim, sua inclusão revela um traço expressivo do Brasil contemporâneo. Malafaia transita entre púlpitos, mídia e corredores do poder.
No filme, vemos Malafaia próximo do então presidente Jair Bolsonaro e pregando a sua congregação. Os sermões fazem uma mistura inusitada e até absurda de defesa da fé religiosa com ataques à Escola de Frankfurt — aquela dos pensadores Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Max Horkheimer. Essa conexão aparentemente improvável tem um objetivo claro, pois busca sua inserção com força no debate público e modela uma gramática moral e ideológica da política.
Utopia teológica
Em “Apocalipse nos Trópicos”, Petra constrói um painel dos anos de 2019 a 2022. O filme é menos uma cronologia factual do período e mais uma interpretação subjetiva. A narrativa é moldada pela voz da diretora e enriquecida por sociólogos, historiadores e filósofos brasileiros que ajudam a elaborar a ideia central.
O filme desenha o que vem se constituindo um “projeto nacional” calcado no apocalipse. O termo é ambíguo. Pode significar a experiência do fim (a dissolução da esfera pública racional) e também, como no sentido original, uma revelação. A teologia política emerge como chave interpretativa para os novos tempos do país.
Há uma continuidade clara com “Democracia em Vertigem”. Os dois filmes devem ser vistos em conjunto, pois tratam da crise política brasileira. Rodrigo Nunes aproximou o documentário de Petra Costa ao filme “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. Chamou essa relação de passagem do transe à vertigem. No filme de Glauber, um poeta e jornalista, Paulo Martins, agoniza em meio ao teatro político de Eldorado, dividido entre o populismo e o uso da religião como instrumento de poder.
No filme de Petra, não é mais o transe glauberiano (um estado de entrega sensorial e estética) que domina a cena, mas sim a vertigem. Em comum, surge o desfalecimento do chão racional sob os pés dos personagens reais ou fictícios.
Se no universo alegórico de “Terra em Transe” tínhamos Porfírio Diaz, figura política que encarna o uso estratégico da fé, e Vieira, o populista golpeado, o Brasil de Petra Costa tem líderes e atores políticos que se movem num espaço de aparente e crescente irracionalidade. Passados mais de cinquenta anos entre um filme e outro, a dissolução do debate racional é sem dúvida o traço comum.
Em “Democracia em Vertigem”, Petra assume o lugar do narrador que testemunha o impeachment de 2016 com a perplexidade de quem vê o sentido escapar. Em “Apocalipse nos Trópicos”, ela aprofunda essa experiência, projetando a imagem de um país que, talvez, viva seu apocalipse não como catástrofe terminal, mas como revelação de um novo regime simbólico. Nele, a teologia política pode ser a gramática dominante.
O cinema de Petra Costa, assim, registra acontecimentos políticos de grande repercussão e dá uma forma narrativa a eles. Faz uma interpretação que se não é original, pelo menos condensa uma série de pensamentos e ideias em circulação. Entre transe e vertigem, entre crise e revelação, entre política e fé, as imagens devolvem ao espectador um Brasil que é um objeto a ser iluminado.