Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 1999, “Tango”, longa-metragem argentino de Carlos Saura, é uma belíssima montagem com uma série de filmes-dança que retratam situações e sentimentos vividos pelo protagonista Mario Suárez (Miguel Ángel Solá). No enredo, o personagem é abandonado pela esposa, Laura, e então decide escrever uma peça que expresse suas emoções durante o colapso emocional e sua paixão pelo tango. A vida, no entanto, vai imitando a arte ou vice-versa, construindo a narrativa em metalinguagem.
Dentro do espetáculo, o tango faz tanto uma reconstrução histórica da Argentina quanto investiga o próprio Mario. Ele busca compreender-se a si mesmo através das interações de seus dançarinos. Espelhos em diversas cenas funcionam como um dos principais símbolos visuais do filme, apontando a dualidade entre a ficção e a realidade, as várias identidades de Mario na história (diretor, amante, criador, personagem) e, também, sua autopercepção fragmentada. Alguns espelhos distorcidos na mise-en-scène mostram que a realidade não é uma imagem verdadeira, mas está moldada pelas emoções. No caso de Mario, a dor, a paixão…
Um dos produtores do show de Mario é Ângelo (Juan Luis Galiardo), um empresário poderoso e igualmente perigoso. Ele convence Mario a dar uma chance em sua peça para Elena (Mía Maestro), uma jovem dançarina que também é uma beldade. Mario também desenvolve uma paixão por Elena, que simboliza um renascimento do amor e do desejo na vida do protagonista.
Repleto de metáforas, o tango expressa a paixão e a dor; é uma linguagem dramática e visceral daquilo que as palavras não alcançam. Cores fortes, como o vermelho, são as emoções à flor da pele: a paixão, o desejo, a dor, a violência, o preço de criar arte. A fotografia de Vittorio Storaro é apontada como um dos maiores trunfos do filme. Seu uso de luzes coloridas, filtros e composições teatrais transforma os números de dança em cenas pitorescas. Com uma estética teatral, o espectador sente-se como se estivesse sentado na plateia.
A trilha sonora de Lalo Schifrin dialoga com clássicos do tango de Piazzolla, Gardel e outros tangos tradicionais, mesclando também jazz e eletrônico em alguns momentos. O filme é organizado em blocos rítmicos que fluem com sequências de danças que misturam a vida com a fantasia.
Não apenas a memória pessoal de Mario é inserida na coreografia, mas também a memória nacional. Em uma das cenas com maior carga emocional do filme, Saura cria uma coreografia sobre a repressão militar, relembrando o caso de um adolescente morto pisoteado por militares. O próprio ato de encenar o ocorrido é um ato de resistência artística, recuperando algo que o regime tentou apagar. Ali, os espelhos refletem a realidade que foi distorcida ou negada, também um reflexo da sociedade ferida. Os produtores tentam convencer Mario a remover o número, afirmando que ele desagradará os militares ou que o passado deve ser enterrado. Mario, em um dos diálogos mais icônicos, cita Borges ao falar que “o passado é indestrutível”.
Apesar de muito bem recepcionado pela crítica mundial, uma das maiores reclamações sobre o filme é a existência de lacunas de acontecimentos, a falta de densidade dos personagens e a escassez de diálogos que conectam esses personagens. Mas isso nunca foi um descuido de Saura, e sim uma escolha artística para sua obra. Para ele, o tango deve falar. Os personagens devem ser figuras arquetípicas, representações simbólicas. Se Mario é o criador, Elena é a musa. Ângelo é o controle. A falta de diálogo é proposital e simboliza a incomunicabilidade das pessoas, sempre presas a “performances”. Não é preciso usar palavras, pois a linguagem emocional de Saura é codificada.
Filme:
Tango
Diretor:
Carlos Saura
Ano:
1998
Gênero:
Drama/Fantasia
Avaliação:
10/10
1
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Fer Kalaoun
★★★★★★★★★★

