Uma vez instalada no seio doméstico, a violência corrói tudo. Crianças expostas a agressões físicas, verbais ou psicológicas crescem com um estigma, passam a vida empenhando-se por merecer a aceitação de quem as rodeia, mesmo que essas pessoas nem importem tanto assim. Quando uma família acaba, morre uma inigualável chance de felicidade que alguém pode ter, a mais imediata, a mais genuína, e procurar explicações é alimentar o desespero. O abismo do isolamento abre feridas profundas, e sentir-se parte do mundo é um desafio que muitos nem se dão ao trabalho de tentar vencer. Essa é a primeira impressão diante de “Steve”, um drama quase insultuoso sobre tragédias íntimas que se dispõe a molestar o público. Conhecido pela série “Peaky Blinders” (2013-2022), aqui Tim Mielants compõe uma história cujo teor fatalista ganha corpo acompanhando um homem exausto, cada vez mais certo de que sua contribuição para uma humanidade menos bestial não serve de nada. Que atire suas pedras quem nunca experimentou tal desassossego.
O personagem-título encara uma série de provações em seu trabalho como diretor de uma instituição para jovens em vulnerabilidade social no interior da Inglaterra da segunda metade dos anos 1990, o que o empurra para um dilema inexpugnável. Steve ama Stanton Wood, um “reservatório superfaturado de lixo para conter a escória da humanidade”, e seus problemáticos moradores, solenemente esquecidos pela civilização, porém sua paixão pelo trabalho e tudo de maravilhoso e cruel quanto ele implica está arruinando sua sanidade mental, ao ponto de não reconhecer-se. Ele não consegue mais dizer se continua a tentar por convicção ou medo de críticas, e o britânico Max Porter adapta “Shy” (“tímido”, em tradução literal; 2023), um de seus romances mais famosos, mudando a perspectiva. No livro, o autor mira Shy, um garoto cujos vínculos com o lado de fora de Stanton Wood são cortados de maneira brutal; Mielants, por seu turno, dá voz a uma figura igualmente marginalizada, mas que não inspira a mesma compaixão. Um burocrata da derrota da sociedade.
Apesar de carregados de tensão, os encontros de Steve e Shy são a melhor coisa no filme. Numa cena da abertura, os dois cruzam no terreno contíguo ao reformatório, onde Shy fuma maconha e dança ao som de um rap no walkman, e por um instante tem-se a enganosa sensação de um final feliz. Não muito tempo depois, os rapazes digladiam-se em brigas porque alguém demora no banheiro, ou simplesmente porque nada lhes parece convidativo o bastante, tudo regado à oxicodona que aparece de modo enigmático. Mielants nem sempre dá conta de explicar determinados elementos da narrativa, preenchendo as lacunas com sequências incômodas. O colapso de Steve é exibido cruamente, sem firulas, e o que pareceria gratuito no trabalho de um outro ator ganha uma demão de lirismo com Cillian Murphy. Atento, Murphy descobre nos colegas uma pista para enriquecer seu desempenho e mesmo nas horas em que Steve silencia, desalentado, achando-se um pária, ninguém alcança seu voo. É visível que Jay Lycurgo espelha-se nele e até o imita, sabiamente. “Oppenheimer” (2023), o arrasa-quarteirão dirigido por Christopher Nolan, foi uma prova de fogo para Cillian Murphy, mas em “Steve” ele é a própria bomba.
Filme:
Steve
Diretor:
Tim Mielants
Ano:
2025
Gênero:
Drama
Avaliação:
8/10
1
1
Giancarlo Galdino
★★★★★★★★★★