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Tanto assustador quanto fascinante, suspense com Mia Goth é um diamante escondido na Netflix

Tanto assustador quanto fascinante, suspense com Mia Goth é um diamante escondido na Netflix

“Pearl” apresenta uma jovem que vive numa fazenda isolada e enxerga no palco a saída para uma rotina de cuidados forçados e vigilância materna. O objetivo da personagem é claro: ser aceita como artista e deixar a fazenda. O primeiro obstáculo é concreto, a mãe controla horários, dinheiro e deslocamento, e exige que a filha cuide do pai debilitado. O segundo obstáculo é social, a realidade externa passa por uma epidemia e por carências materiais que comprimem qualquer fantasia de ascensão. A protagonista entende que precisa provar valor; essa necessidade passa a guiar suas escolhas, transformando cada cena em tentativa de obter um selo de existência que ninguém ao redor concede.

A apresentação do conflito se dá quando a personagem arrisca um teste de dança na cidade. Antes disso, a história já mostrou a rotina que a prende e a pequena brecha de fuga criada ao frequentar o cinema local. Lá, um projecionista a trata como alguém interessante. Essa validação parcial funciona como combustível. A cadeia causal fica nítida: o elogio recebe resposta imediata, que é a busca por novas oportunidades fora de casa. Voltar tarde e esconder o deslocamento provoca discussão com a mãe, e a discussão expõe o núcleo dramático, a cobrança moral que enxerga o desejo artístico como desvio. A mãe não fornece só proibições, ela produz humilhação. Ao reduzir a filha a cuidadora e passiva, eleva a meta da protagonista: não basta ir embora, é preciso triunfar para provar que sempre mereceu.

A primeira grande virada nasce de uma recusa. A mãe reprova o pedido de sair de casa para a audição, a tensão escala, e um acidente doméstico acontece durante o embate. A reação da protagonista não é imediata; o filme dedica tempo ao cálculo silencioso que vem depois. Em vez de pedir ajuda ou confessar, ela decide ocultar. O gesto reconfigura o conflito. Até ali, o problema era sair; a partir dali, o problema inclui sustentar uma narrativa que a mantenha apta à audição e, ao mesmo tempo, livre de culpa. Essa escolha determina o ritmo das cenas seguintes e molda a relação com o pai, que se torna peça muda de uma casa em colapso.

A audição ocupa o centro da estrutura porque concentra as linhas dramáticas. Chegar até lá dependeu de mentiras e omissões. A preparação girou em torno de uma amizade de conveniência com a cunhada, que serviu de suporte emocional e logístico. No palco, a protagonista entende que o júri não avalia sua história de vida, avalia um número. A recusa é seca. O objetivo imediato falha, e surge a pergunta decisiva: o que fazer com a frustração depois de sacrificar vínculos para alcançar aquele momento. A resposta escolhida pela personagem é direcionar a dor para quem estiver por perto. A causalidade é direta, o não recebido como artista vira sim para a violência.

A partir desse ponto, o roteiro amarra cada ação a um encobrimento. A personagem precisa livrar-se de testemunhas, apagar rastros e recompor a casa como se nada tivesse acontecido. O projecionista, que antes parecia promessa de fuga, vira ameaça de exposição quando percebe contradições no comportamento dela. O encontro entre os dois, no galpão e depois no retorno pela estrada, tem função narrativa dupla: revela ao espectador que a protagonista perdeu freios internos e confirma para ela que a melhor maneira de manter o futuro intocado é eliminar o presente incômodo. Não há suspense externo, há dedução interna. Ela calcula, decide e executa.

O diálogo mais longo do filme, no jantar com a cunhada, altera a informação de modo decisivo. A escolha de manter a câmera fixa e prolongar a confissão muda o tempo dramático e desloca o foco para a lógica interna da personagem. Ao ordenar lembranças, ressentimentos e atos recentes, ela tenta converter crime em narrativa justificada. A cena tem função estrutural, porque ao dizer em voz alta o que fez e por que fez, a protagonista procura algo além de alívio; procura audiência. Quando a cunhada reage com pavor contido, a protagonista entende que não terá o reconhecimento que queria, apenas medo. A consequência é imediata e fatal.

A direção acompanha o ponto de vista da personagem sempre que isso altera a leitura de risco. Em momentos de perseguição, a câmera adota enquadramentos que exibem rotas de fuga ou a falta delas, sempre a partir da percepção de quem caça, não de quem é caçado. Esse desenho muda o foco: a tensão não nasce do desconhecido, e sim do cálculo dela, que escolhe momento, ferramenta e local. A música, que em passagens anteriores sublinhava a fantasia de palco, aqui serve para ironizar a tentativa de transformar a fazenda em cenário de triunfo pessoal. Quando o som cresce durante a arrumação final da casa, o efeito é mostrar que, para ela, tudo virou espetáculo doméstico.

A atuação da protagonista afeta diretamente o sentido das cenas, porque ela alterna sorriso treinado e olhar vazio como estratégia de manipulação. Isso não é comentário valorativo, é informação observável: nas cenas em que precisa convencer alguém, ela prepara o rosto antes de falar, segura a frase, testa a reação e ajusta o tom. Nas cenas em que ninguém olha, o corpo relaxa, e a frieza reaparece. Essa variação não é ornamento, é ferramenta de trama, pois abre portas e desarma suspeitas até que a ação seguinte as feche de maneira definitiva.

A montagem privilegia elipses que reforçam a frieza dos gestos. Em vez de mostrar toda a preparação de cada ato violento, corta-se do impulso à consequência. Esse desenho produz efeito claro na progressão: o interesse não está no como detalhado, e sim no porquê e no depois. Quando a narrativa retorna à casa para a sequência do jantar final, o espectador já sabe que a protagonista aprendeu a encenar normalidade. O retorno de um personagem ausente, recebido com mesa posta e sorriso que não termina, funciona como clímax emocional. O sorriso prolongado fixa a imagem de alguém que escolheu uma fantasia de família perfeita, não como sonho, mas como máscara definitiva para preservar o que restou de controle.

Do ponto de vista da coerência interna, “Pearl” evita facilidades gratuitas. O projecionista não desaparece sem motivo, a cunhada não toma decisões descoladas dos fatos, a mãe não interfere sem histórico. Cada peça acionada antes volta para cobrar. Até o cuidado com o pai, que parecia apenas obrigação moral, torna-se dilema prático quando a protagonista precisa decidir se mantém uma testemunha silenciosa em casa. O filme repete uma equação: desejo, obstáculo, mentira, violência, encobrimento. Essa repetição cria ritmo e faz a escalada parecer inevitável para a personagem, apesar de sempre haver alternativas recusadas por ela. A história sugere que a aprovação buscada fora não compensa a desaprovação carregada por dentro, e essa balança, desequilibrada desde o primeiro ato, define as saídas erradas que ela escolhe.

Comparações técnicas aparecem apenas quando mudam o foco narrativo. A fotografia saturada em cenas de fantasia não pretende descrever beleza, mas sinalizar a diferença entre o mundo que a protagonista tenta compor e a rigidez do cotidiano. Quando a saturação retorna a momentos de violência, a decisão visual não funciona como efeito decorativo, e sim como comentário sobre a confusão que a personagem faz entre consagração pública e espetáculo privado. O mesmo vale para a música que interrompe, de propósito, a naturalidade da cozinha arrumada; o corte musical informa que a personagem está encenando para um público imaginário.

Os diálogos servem sempre para abrir ou fechar portas. No ensaio para a audição, a fala da amiga que promete que tudo vai dar certo retira o peso da decisão anterior de mentir para a família e motiva o deslocamento até a cidade. No encontro com o projecionista, as palavras funcionam como moeda de troca, cada elogio recebido pede cumplicidade em retorno, e isso aprofunda o vínculo que depois será explorado pela protagonista para conseguir transporte e abrigo. No jantar confessional, a fala vira arma. Ao organizar o discurso, a personagem tenta manter a amiga sentada por tempo suficiente para decidir o que fazer. O texto trabalha causa e efeito, não slogans.

O desfecho amarra objetivos e consequências. A protagonista queria reconhecimento e saída. Consegue o oposto: isolamento e uma encenação permanente para manter a casa como cenário que esconda o que aconteceu. A chegada do marido e a recepção ensaiada indicam que ela encontrou um modo de viver a fantasia sem abandonar o local, o que revela falência do objetivo inicial e substituição por uma farsa que demanda energia constante. A imagem final, sustentada até a exaustão, não procura aplauso do público; tenta congelar o julgamento dele. A coerência dessa opção fecha o arco: a personagem começou pedindo um olhar que a aprovasse e termina controlando o olhar alheio pela força de uma máscara que não pode cair.

A cadeia de causa e efeito permanece íntegra do começo ao último quadro. Desejo vira plano, plano encontra obstáculo, a negação conduz à mentira, a mentira pede nova ação, e cada nova ação cobra preço maior. O filme se mantém fiel a essa progressão e recusa atalhos explicativos, preferindo decisões observáveis, falas específicas e consequências encadeadas. Dessa forma, “Pearl” transforma um impulso de palco em rotina de manutenção de uma farsa, sempre ajustada para impedir que a realidade exponha aquilo que a protagonista tenta vender como triunfo.

Filme:
Pearl

Diretor:

Ti West

Ano:
2022

Gênero:
Coming-of-age/Drama/horror/Thriller

Avaliação:

8/10
1
1




★★★★★★★★★★



Fonte

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