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Seu Osvaldo, lá da rodoviária de Quiprocó da Serra de Santo Grande do Sul

Para o Seu Osvaldo, lá da rodoviária de Quiprocó da Serra de Santo Grande do Sul, o mundo é de uma imensidão bonita, não fossem as pessoas. Mas ele teima que para conhecer o mundo todinho não precisa nunca sair de sua cidade natal, onde nasceu, onde sempre trabalhou e onde pretende morrer e ser enterrado um dia lá no jazigo da família.

— Porque, veja só, eu já vendi passagem até pra estrangeiro. E teve gente que veio do Acre, desceu aqui, teve gente que foi para o Espírito Santo, subiu aqui, teve gente que queria ir para Santa Catarina, trocou de ônibus aqui, teve gente que sonha em conhecer o Mato Grosso e já veio perguntar preço do bilhete aqui.

Não adiantava nada eu lembrar o Seu Osvaldo que ninguém viaja com a cabeça dos outros, exceto se por um livro bom. Não adiantava nada argumentar que Seu Osvaldo também podia uma hora embarcar num dos dezesseis veículos que partem de Quiprocó da Serra de Santo Grande do Sul a cada semana.

Ele fala que tem preguiça de estrada.

— E hoje está tudo na internet. Vejo fotografia, vejo filminho no YouTube. Assim já fui até para o Rio de Janeiro, sei como é o bondinho por dentro e por fora.

Mas eu insisto que viajar abre a cabeça. E argumento tirando o chapéu. Seu Osvaldo, que mede uns vinte centímetros a mais do que eu, pode olhar a calvície se desenvolvendo.

— Meu filho, minha cabeça já é muito das arejadas, viu!? Vento entra por uma orelha, dá três voltas, faz redemoinho e tchum: sai rápido pela outra.

E solta uma gargalhada seca. Seu Osvaldo é fogo: tem o bom humor dos turrões que acreditam serem proprietários de toda a razão.

Ele se orgulha de nunca ter posto os pés para fora do seu perímetro rodoviário. Diz que não precisa.

— Porque o mundo vem até mim. Você já viu bem como os bagageiros? Cada mala tem uma história, um carimbo invisível. E eu já carreguei mala com cheiro de mar, mala com temperatura de floresta, mala que parecia ter areia dentro só de balançar. Já viajei muito mais de alça de mala do que muito turista com passaporte.

Vai proseando enquanto se ajeita na cadeira, com a convicção de quem acabou de provar uma tese de doutorado na pracinha.

Não sou fácil. Argumento que mala não substitui experiência. Que fotografia não tem sabor nem faz barulho, que vídeo não tem vento, que nenhum site dá conta da maresia grudando no cabelo.

Mas o Seu Osvaldo fecha o raciocínio com uma de suas frases:

— E pra quê que eu vou atrás de tudo isso, se depois a saudade é de voltar pra cá?

No fundo, o que Seu Osvaldo não admite é que tem medo. Até porque, para ele, homem de verdade não pode ter medo de nada. E ele tem medo. Coleciona medos. Tem medo de médico, tem medo de cobra, medo de ficar viúvo, medo de morrer, medo de perder o emprego. E medo de que, se mudar de funcionário para passageiro, se sair lá da rodoviária de Quiprocó da Serra de Santo Grande do Sul para conhecer o mundo, vá viver uma epifania.

Seu Osvaldo tem medo de viver uma epifania.

Tem medo de descobrir que o mundo é menor ainda do que o banco da rodoviária que ele vê todos os dias sempre apinhado de gente esperando o próximo ônibus. Porque se isso acontecer, se isso acontecesse, sua grande viagem seria a da volta, quando ele reassumiria o posto de bilheteiro, guardião que é dos embarques e dos desembarques.

Segundo ele, só tem uma coisa pior do que se perder no mundo: é o mundo não sentir a menor falta da gente. Seu Osvaldo gosta das filosofias.

Rebato que está cheio de caminhos por aí.

— Mas a rodoviária também não é pequena.

Sugiro que ele tome um ônibus qualquer, nem que fosse até a cidade vizinha.

— E se eu gostar? Depois vou ter que ir de novo…

Seu Osvaldo comenta que não tem paciência, que essas coisas dão muito trabalho. Uma trabalheira danada.

Digo que viajar é bom para se encontrar.

— Eu já me encontrei faz um tempão. Moro comigo mesmo.

Viajar é bom para abrir horizontes, Seu Osvaldo.

— Horizonte eu vejo daqui mesmo. É só olhar pro lado.

Mas não tem papo bom nem tempo ruim. Quando dá o horário, Seu Osvaldo nem precisa olhar para o relógio dourado bem calibrado no seu pulso esquerdo. Ele ajeita o boné, faz que vai fechar a cortina do guichê e encerrar o expediente. Antes, quer encerrar também o assunto, com a naturalidade de quem anuncia um destino na vitrine. O seu destino.

— Próxima parada: Quiprocó da Serra. Sempre.

E fechou o guichê.



Fonte

Redação

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