Nordeste Magazine
Cultura

Se existe um romance argentino que você precisa assistir, ele está no Prime Video

Se existe um romance argentino que você precisa assistir, ele está no Prime Video

Lu vive de aparências, acostumada a transformar pequenos episódios do cotidiano em histórias vistosas para o feed. Entre amigas, aceita uma aposta tentadora: fazer com que Diego, um argentino de humor áspero que cruza seu caminho durante uma noite agitada, se apaixone. A brincadeira cresce, vira compromisso público e a empurra para uma sequência de gestos improvisados, inclusive uma viagem. Em “Tangos, Tequilas e algumas mentiras”, dirigido por Celso R. García, Cassandra Sánchez Navarro interpreta Lu com leveza e ritmo controlado, enquanto David Chocarro compõe um par que resiste à sedução como quem protege um território íntimo. O filme retoma ideias popularizadas por uma comédia espanhola de 2014, reconhecendo raízes sem perder sotaque próprio.

O núcleo argentino acrescenta outra temperatura ao enredo. A chegada de Lu a Buenos Aires não funciona como postal, e sim como campo de teste para as versões que ela criou sobre si. Soledad Silveyra dá corpo a uma figura materna que acolhe e impõe limites, e Ximena Sariñana ajuda a dimensionar o círculo social que alimenta a aposta inicial. A diferença de ritmo entre as cidades se converte em contraste expressivo: no México, urgência e autopromoção; na Argentina, regras familiares e rituais que pedem escuta. Essa oposição sustenta muitas das situações cômicas, sempre ancoradas em escolhas compreensíveis para quem já tentou parecer melhor do que se sente.

A narrativa parte de um gesto comum da era das redes: anunciar uma capacidade e correr atrás do fato para validá-la, e investiga as consequências emocionais dessa dinâmica. Lu vende para as amigas e seguidores a promessa de uma conquista, depois precisa fabricar provas, prolongar a encenação e administrar os efeitos colaterais. O filme observa esse jogo com ironia, mas sem demonizar a personagem. O interesse recai nas negociações íntimas que surgem quando se vive sob expectativa de plateia: como sustentar o charme, como lidar com o incômodo de ser contrariada, como admitir a própria insegurança quando tudo parece editável.

O roteiro assinado por Marco Lagarde e Patricio Vega adota a gramática clássica do gênero, com aposta, desencontros, queda de máscaras e tentativa de recomeço, e a usa como ponto de partida para observar hábitos afetivos das redes. Em vez de punir a protagonista, acompanha suas dúvidas e mostra como pequenos exageros se acumulam até virar um labirinto. Quando Lu promete um resultado, precisa produzir evidências, lidar com capturas de tela e administrar expectativas. A cada nova mentira, cresce a chance de ser desmentida em público, o que dá peso às cenas sem travar o andamento. A curiosidade sobre o próximo passo nasce dessa corda bamba, que mantém a narrativa viva.

Cassandra Sánchez Navarro constrói uma personagem vaidosa e vulnerável, capaz de alternar autoconfiança calculada e receio de fracassar. Sua comédia se apoia em olhar, pausa e tropeço, sem recorrer a exageros. David Chocarro atua no registro do humor seco, projetando firmeza que pode soar antipática num primeiro momento e se abre em sinais discretos de interesse. Quando estão juntos, a dupla encontra uma dinâmica que não depende de slogans: a graça vem de como cada um aprende a ler o outro, erro após erro, até que coragem e cuidado passem a dividir a mesma frase. Esse percurso dá sentido ao romance e sustenta o interesse pelo desfecho emocional, guardado para além do que se pode antecipar.

Na forma, o filme prefere o movimento ao discurso. A câmera acompanha deslocamentos, escutas e interrupções que soam plausíveis na vida urbana. A fotografia de Fido Pérez-Gavilán diferencia os ambientes sem caricatura: no México, cores mais quentes e contraste evidente; em Buenos Aires, tons discretos que favorecem uma sensação de observação constante. A trilha de Camilo Froideval e Dan Zlotnik combina referências de tango e pop latino de modo econômico, sugerindo estados de espírito sem competir com os atores. O desenho de produção cuida de bares, ruas e casas com objetos que situam as relações, útil para que a comédia funcione como consequência de contexto.

O trabalho de elenco de apoio reforça essa base realista. Soledad Silveyra ocupa a cena com naturalidade, lembrando que família também é espaço de regras e afeto, e não apenas obstáculo para casais improváveis. Ximena Sariñana aparece de maneira pontual, suficiente para dar lastro às escolhas impulsivas de Lu e às cobranças de amigas que transformam bravatas em compromissos. O filme valoriza esses contornos porque neles moram os desafios do par central: não se trata apenas de gostar, e sim de aceitar que o outro tem vida, lealdades e tempos que não cabem em uma postagem.

A passagem para a Argentina reorienta a comédia. Em lugar de ampliar a escala, a narrativa estreita o foco e insiste nas consequências de expor promessas que ainda não se sustentam. O humor nasce do atrito entre o improviso de Lu e a formalidade do ambiente que a recebe, sem humilhar ninguém. Em planos mais silenciosos, quando a protagonista precisa recuar e ouvir, a história ganha densidade emocional. A câmera não busca discursos; acompanha hesitações que revelam a vontade de acertar e o medo de admitir erros no espaço onde todos opinam. Esse recorte comunica bem a ansiedade contemporânea por aprovação e controle de imagem.

A condução de Celso R. García demonstra confiança nos atores e nas situações. As cenas avançam com cortes simples, sem pirotecnia, e a montagem preserva respiros que deixam o humor se completar no gesto. Quando a obra se permite alguns atalhos, o faz a serviço de um objetivo claro: manter viva a pergunta sobre o que vale mais, fama de conquista ou a experiência de um vínculo que não precisa ser provado. A cada rodada da aposta, Lu aprende que o aplauso imediato cobra fatura, e Diego, que a armadura do ceticismo impede descobertas. A possibilidade de encontro nasce desse equilíbrio instável.

O título conversa com dois símbolos que funcionam como pistas de caráter: o tango, associado a códigos de permanência e atenção, e a tequila, ligada à impulsividade festiva. A narrativa pergunta quanto de cada um cabe numa história que começa sob holofotes digitais e, pouco a pouco, busca espaço longe deles. No último trecho, permanece a dúvida que sustenta o interesse do público: se tudo pede prova, o que acontece quando alguém decide acreditar sem registrar?

Filme:
Tangos, Tequilas e algumas mentiras

Diretor:

Celso R. García

Ano:
2023

Gênero:
Romance

Avaliação:

8/10
1
1




★★★★★★★★★★



Fonte

Veja também

O filme mais bonito, angustiante e maravilhoso que você verá no Prime Video neste fim de semana

Redação

Um dos maiores suspenses do século: o filme que é o favorito das pessoas inteligentes, no Prime Video

Redação

Sátira de uma das maiores obras de Jane Austen é alívio cômico diante da austeridade na vida, na Netflix

Redação

Leave a Comment

* By using this form you agree with the storage and handling of your data by this website.