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Por que Flores para Algernon continua sendo um dos livros mais cruéis e humanos já escritos

Por que Flores para Algernon continua sendo um dos livros mais cruéis e humanos já escritos

Primeiro, as palavras tateiam. São pedras pequenas empurradas com o pé num terreno que ainda não tem mapa. Em seguida, uma voragem, frases que crescem como vigas, erguidas depressa demais para a estabilidade que prometem. O mundo parece finalmente legível, pessoas, sistemas, desejos, tudo ganha contorno. E, então, um rumor na engrenagem, a máquina começa a devolver ecos em vez de respostas. A escritura que se alargou volta a estreitar, não por capricho, mas por esgotamento. “Flores para Algernon” é esse arco, uma vida que aprende, e depois desaprende, diante de nós.

A forma é a primeira crueldade. Relatórios de progresso, redigidos por Charlie Gordon, contam uma ascensão acelerada e uma queda sem atalhos. No início, a ortografia falha, a sintaxe manca, a voz confia nos colegas, na boa vontade da padaria, no mundo que parece simples e previsível. O texto registra a humilhação sem nomeá-la, a piada que todos entendem, menos ele, o riso convertido em rotina, “deu uma de Charlie Gordon”, a senha do deboche. A literatura frequentemente denuncia; aqui, ela mostra. Sem absolvições, sem tribunal. Apenas o fluxo bruto do cotidiano.

Depois, a cirurgia. A linguagem cresce como se tivesse pressa. Charlie descobre conceitos, línguas, sutilezas, e a nova inteligência não serve para brilhar numa vitrine. Serve para escancarar o que antes passava por carinho e era controle, por brincadeira e era humilhação. A cada página, ele enxerga a moldura do teatro social que lhe emprestava papel fixo. A promoção não é apenas mental, é moral. E dói. O mundo reiluminado denuncia uma arquitetura de pequenas violências com a nitidez das lâmpadas de hospital.

Flores para Algernon, Daniel Keyes (Editora Aleph, 288 páginas)

O livro coleciona cenas em que a civilidade se desfaz no primeiro choque. O sr. Donner, dono da padaria, informa que tem de deixar Charlie ir embora, e a conversa vem carregada do pêsame burocrático típico de quem se crê justo. O gesto paternal aparece como álibi, o negócio, como fatalidade, a amizade, como lembrança útil e encerrada. Não há maldade programática, há medo de desordem. É assim que a compaixão falha. É assim que se corta alguém do cotidiano.

Keyes recusa o didatismo. Em vez de sublinhar, repete motivos com variações de luz. O laboratório vira auditório, a ciência vira espetáculo. No congresso, o rato genial e o chamado imbecil gênio são apresentados ao aplauso, e o espetáculo pede desempenho, gráficos, a coreografia do caso de sucesso. A plateia não aplaude pessoas, aplaude a narrativa de avanço. Charlie, ao perceber o enredo, pensa em libertar Algernon. A intuição de insubordinação moral recusa ser exibido como fenômeno quando o que se reivindica é outra coisa, pessoa.

A inteligência nova não resolve a vida anterior. Numa passagem decisiva, ele explica a Alice que cresceu intelectualmente, mas conservou a linha emocional do Charlie infantil. O brilho não abole a sombra antiga. A mente ficou veloz, o corpo, a intimidade, o medo, tudo ainda tropeça. É um conflito sem catarse, o saber que não consola, o desejo que ainda não sabe dizer seu próprio nome. Amor não é algoritmo. E a consciência, aqui, não redime; apenas ilumina.

É então que o romance afunda a lâmina. A descoberta do “Efeito Algernon-Gordon” não chega como revelação melodramática. Vem como conclusão fria, assinada em timbre acadêmico, o ganho acelerado carrega em si o vetor da queda. A hipótese é clara, quase impessoal. O que a torna devastadora é a frase silenciosa por baixo, isso acontecerá comigo. Conhecimento como sentença. Lucidez como prólogo da perda.

Algernon morre primeiro. O corpo do rato não é filmado com piedade sentimental, é preparado num pequeno receptáculo, retirado do descarte anônimo, enterrado no quintal sob um monte de flores. O gesto, modesto e obstinado, funda um rito que faltava a todo o experimento. Dignidade é um trabalho manual. O luto, aqui, é uma tarefa concreta, feita com pá e com as mãos. E a frase que Charlie escreve depois, pela primeira vez, sinto medo do futuro, abandona qualquer esquema de heroísmo. É só um homem admitindo vertigem.

A queda, quando chega, não vem como tombo, vem como infiltração. O texto se encharca por dentro. Charlie confessa que precisa buscar até palavras simples no dicionário, irrita-se, cansa, e então toma uma decisão de sobrevivência, usar palavras fáceis. O mundo, mais uma vez, precisa caber no vocabulário que sobrou. Ainda assim, ele mantém o ritual das flores no túmulo de Algernon. É um micro close de rara potência, o pensamento vacila, o gesto não. Duas linhas, e tudo o que importa está ali.

Há outros pontos de sangria ética. A discussão com Nemur, quando Charlie, cansado de ser troféu, lembra o óbvio que todos esquecem, que é uma pessoa e não um resultado. O deslocamento social quando a antiga comunidade precisa expulsá-lo para recompor seu equilíbrio. A terapia que encena um esvaziamento gradual, o consultório convertido em sala de espera para a própria mente. São cenas de fricção, sem trilha à prova de lágrimas. E não pedem virtude automática dos personagens, pedem reconhecimento.

É tentador chamar “Flores para Algernon” de parábola científica, mas o que sustenta sua permanência é outra liga. Keyes trabalha como um relojoeiro que se recusa à pompa do acabamento invisível. Mostra o mecanismo. O leitor percebe o movimento dos dentes, a corda dos dias, a mola da inteligência esticada além do aceitável, e percebe também quando o metal começa a perder memória. No limite, a tragédia aqui é sem demonologia. Não há Mefistófeles; há comitês, verbas, congressos. Ainda assim, por um segundo, “Fausto” e “Frankenstein” tocam o palco, lembrete de que pactos modernos continuam exigindo corpos.

O romance também se recusa à inocência da pura vítima. Em certos momentos, a mente aguda de Charlie se torna cruel, impaciente, ferina. O orgulho lateja. A autopiedade tenta impor sua lógica. Não há hagiografia. Há uma pessoa em fricção consigo mesma, alternando lucidez e desespero, grandeza e ressentimento. E o livro a acompanha sem tutela, o que exige do leitor uma responsabilidade rara, suportar a ambiguidade sem a muleta do julgamento apressado.

Na tradição das narrativas de metamorfose, “Flores para Algernon” desloca o brilho do extraordinário para o miúdo, um emprego perdido, um pedido de perdão que nunca chega, uma professora que não desiste, uma irmã e uma mãe expostas, a cidade que oferece esconderijos e vitrines. O extraordinário, quando aparece, é a curva do gráfico. O decisivo é sempre um gesto. O romance trabalha com essa economia emocional, três cenas bastam para devastar um leitor experiente.

Daniel Keyes
Daniel Keyes

E então vem o fim que não posa para foto. Não há grande arremate moral. Há só um pós-escrito, ortografia de volta ao princípio, o mundo reduzido ao que ainda se pode dizer, e um pedido simples, se alguém for ao quintal, que leve flores. O círculo se fecha sem retórica, o túmulo do rato, o ritual mantido, a mão que insiste em cuidar. Poucas frases, zero espetáculo. O humano no volume mais alto possível.

O que torna o livro um dos mais cruéis e humanos já escritos não é a soma de lágrimas, mas o método de fazê-las inevitáveis. Cruel porque mostra como a inteligência sozinha é incapaz de negociar com a memória, com a vergonha, com a fome de pertencimento. Humano porque devolve a dignidade do gesto mínimo quando todos os conceitos acabam. Cruel porque obriga a assistir à desmontagem lenta de uma voz. Humano porque retém, até o último parágrafo, a possibilidade de delicadeza.

Há romances que pedem leitura. Este pede convivência. O leitor, passadas horas e dias, continua pensando na gramática como músculo, no corpo do pequeno animal enterrado, no brilho esgotado das lâmpadas do laboratório, na má-educação obediente das plateias. E, por algum motivo difícil de enunciar, experimenta a vontade de colocar flores num lugar qualquer da própria vida. Não para consolar, para lembrar. Sobe. Cai. E ainda assim cuida.



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