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O melhor filme do último ano acaba de estrear no Prime Video: ganhador de 4 Oscars

O melhor filme do último ano acaba de estrear no Prime Video: ganhador de 4 Oscars

Uma mulher adulta, com entendimento recém-alfabetizado para o mundo, vive sob vigilância de um médico que define rotinas, apresenta verbos básicos, coleta reações e delimita condutas. O conflito principal nasce desse arranjo: quem decide por ela e com qual justificativa. O médico a trata como descoberta e filha, combinação que confunde cuidado e domínio. Um aprendiz solícito a enxerga como noiva ideal, disposto a prometer estabilidade desde que ela aceite o conjunto de regras. Um advogado sedutor oferece viagem e novidade. Quando a protagonista percebe que o vocabulário oferecido seleciona desejos e proíbe experiências, decide sair da casa laboratório e aprender na rua. Nesse ponto, “Pobres Criaturas” define sua aposta dramática ao colocar linguagem, sexo e dinheiro no mesmo campo, e fazer cada passo produzir resposta concreta do entorno.

A recusa ao casamento proposto pelo aprendiz não é impulso, é dedução construída. Ela compara elogios com vigilância, percebe que as promessas cobram liberdade cotidiana e escolhe acompanhar o advogado. A viagem expõe o mapa de poderes que a casa ocultava. Em navios e hotéis, a protagonista entende que cordialidade varia com a classe de quem paga, e que a conta quitada organiza quem manda, quem obedece e quem é ignorado. Enquanto o advogado a exibe como novidade, ela observa tarifas, gorjetas, olhares e limites de circulação. O primeiro obstáculo real aparece quando o dinheiro dele acaba. Causa e efeito diretos: a proteção evaporada revela o arranjo afetivo como dependência econômica. Sem recursos, o advogado tenta manipular pela culpa. Ela, agora capaz de calcular, decide trabalhar.

O emprego em um bordel aparece como resposta prática à falta de teto e de renda. Ali, a protagonista negocia regras com a gerente, fixa condições para atender clientes e, pela primeira vez, escreve parte do contrato. O bordel não é fantasia, é aula intensiva de economia do desejo. A personagem observa como homens justificam pedidos, como distribuem culpa, como barganham silêncio. Cada atendimento amplia o repertório e ajusta a postura. Ela passa a recusar exigências que negam suas condições, o que altera a hierarquia local e provoca atritos com colegas e frequentadores. A gerente reage com pragmatismo, oferece salário melhor, cobra números e pontualidade. A cada avanço de autonomia, o custo sobe, e a protagonista precisa recalibrar acordos sem perder de vista o objetivo maior, que agora inclui formação escolar.

Os diálogos funcionam como degraus de raciocínio. No início, o médico a descreve como experimento e filha, justaposição que adoça o controle. O aprendiz oferece promessas que confundem afeto e posse. O advogado repete frases grandiosas que se esvaziam toda vez que a carteira aperta. No bordel, a conversa com mulheres mais velhas entrega protocolos de cuidado e alerta, ensinando quando negociar, quando recusar e quando sair do quarto. Quando a protagonista começa a devolver perguntas no mesmo tom das autoridades masculinas, a mudança fica verificável em cena. Ela identifica a manobra e responde com termos que agora domina. O poder da palavra passa do comentário à ação concreta, e isso muda o rumo de encontros e contratos.

A encenação reorganiza ponto de vista para servir ao conflito. A casa laboratório comprime espaço, reforça inspeção contínua e limita horizontes. Nas cidades, os cenários ampliam a profundidade, multiplicam informações ao alcance da personagem e visualizam a expansão do seu campo de escolhas. A passagem do preto e branco para cores intensas coincide com a primeira grande recusa, amarrando forma e decisão narrativa. A montagem acelera nas sequências de deslumbramento, quando tudo é novo, e desacelera quando a protagonista formula regras para si e para os outros, como nas conversas prolongadas com a gerente. Em cada escolha formal, importa mostrar o que ela vê, quando vê e como isso altera a decisão seguinte.

O retorno à casa do médico acontece quando a protagonista já tem linguagem suficiente para apontar contradições. O aprendiz, antes seguro do noivado, ouve a negativa, ajusta comportamento e passa a considerá-la parceira intelectual. Essa inflexão tem efeito direto no arco. Sem a disposição dele para aprender a escutar, não haveria apoio acadêmico. A protagonista decide estudar medicina. A vontade conecta presente e passado quando um homem da vida anterior reaparece reivindicando direitos sobre ela. O conflito se desloca para a esfera legal, e a história testa o que o novo vocabulário permite fazer diante de uma violência instituída.

A tentativa de retomada da suposta propriedade do corpo dela é reação à autonomia conquistada, não acidente. O confronto reúne o que o filme preparou em pequenas etapas: cálculo emocional, leitura do outro, consciência do risco. A protagonista aplica o que aprendeu sobre medo e reputação, domina a margem de tempo que tem a favor e constrói uma saída plausível dentro das regras sociais exibidas até ali. O clímax condensa a cadeia de causas que a trouxe até ali, da recusa ao arranjo doméstico ao enfrentamento legal. O desfecho não reforma o mundo, mas fixa consequências reconhecíveis. Ela assume nome, profissão e companhia, responde a quem antes decidia por ela e aceita o preço atrelado a essas escolhas.

O roteiro evita atalhos que dissolveriam tensões. O advogado não recebe absolvição conveniente, sua queda financeira, construída passo a passo, explica o colapso do vínculo. O médico, que alega proteção, precisa ouvir que também exercia controle. O aprendiz só permanece por perto porque muda conduta e reconhece a centralidade da vontade dela. A coerência interna se mantém quando a protagonista erra cálculo e paga o preço, como ao aceitar uma aposta arriscada durante a viagem. A narrativa não a protege de consequências, oferece instrumentos para atravessá-las, e esse é o sentido do aprendizado apresentado.

As atuações interferem diretamente no que as cenas significam, porque materializam a curva da linguagem. A protagonista começa com frase curta, olhar investigativo e curiosidade sem filtros. À medida que entende jogos sociais, a dicção se alonga, os argumentos ganham precisão e a postura diante de chantagens migra do espanto para a negativa fundamentada. O advogado alterna charme e desespero, revelando a lógica do parasitismo quando perde recursos. O aprendiz move-se da idealização para a escuta, e essa mudança sustenta o elo final. O médico oscila entre ternura e mando, ambiguidade que dá credibilidade às rupturas necessárias.

Som e música redirecionam foco quando importam para a decisão. Em etapas de descoberta, a trilha acelera a sensação de velocidade interna da personagem, o que explica escolhas mais impulsivas. Em negociações tensas, o som ambiente dos salões e do bordel, com vozes, passos e copos, evidencia hierarquias e pressões. Quando o passado se impõe, o desenho sonoro enxuga o entorno e destaca respiração e pausas, comprimindo o tempo da cena para que a decisão pareça inevitável dentro das forças já apresentadas.

A comparação estrutural encontra contexto claro quando lembramos que o mesmo diretor conduz “A Favorita”. Lá, a ascensão social se resolve por contratos afetivos sob regras de corte. Quem pode circular, quem fala por último e quanto vale um gesto público dependem do humor da rainha e da etiqueta do palácio. Em “Pobres Criaturas”, as arenas são instituições modernas, como a sala de cirurgia, o balcão de hotel, o escritório de advocacia e o bordel. A lógica se mantém, muda o tabuleiro. Em ambos os casos, relações de poder passam por quem controla recursos e linguagem. A ponte entre os filmes serve para esclarecer o mecanismo dramático, não para medir grandeza.

Ao fechar, a narrativa respeita a aritmética apresentada desde a primeira cena. Toda liberdade conquistada exige manutenção diária. A protagonista não recebe prêmio simbólico, assume responsabilidade. Os homens ao redor precisam reescrever o próprio lugar ou saem de cena. A história começa com tutela quase absoluta e termina com agência sustentada por vocabulário, trabalho e estudo. O encadeamento de ações e reações confirma a tese dramatúrgica anunciada no início. Em “Pobres Criaturas”, emancipação não é presente, é prática contínua, custosa e irrecusável.

Filme:
Pobres Criaturas

Diretor:

Yorgos Lanthimos

Ano:
2023

Gênero:
Comédia/Drama/Ficção Científica/Romance

Avaliação:

9/10
1
1




★★★★★★★★★



Fonte

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