Um estalo de persiana acorda a rua. A luz se deposita em camadas na calçada; o vidro das vitrines ensaia o próprio reflexo. Ele traz um livro fino no bolso do casaco; ela, um volume pesado na bolsa; o menino, um gibi dobrado no cós da bermuda. Não se conhecem, mas cumprem o mesmo rito: atravessar uma página como quem atravessa uma porta de pressão diferente. Ler não consola; afina. Morre-se um pouco e retorna-se outro, com cicatrizes que orientam.
Às sete, no ônibus, ela abre na segunda página; a primeira ficou ontem, dobrada entre o recibo do mercado e a conversa neutra do elevador. O corrimão está frio; a frenagem empurra o corpo, o piso vibra com o motor, e as frases tomam ar. Duas paradas depois, a cidade segue igual; nela, não. A atenção se adensa; um músculo discreto aprende um gesto.
O texto moveu a fronteira do corpo; um detalhe que não existia em sua biografia: a descrição de uma cozinha acesa de madrugada, a lembrança de alguém cortando maçãs, que agora passa a fazer parte dela. Não há fanfarra para isso; há um abaixamento gentil da voz interna; é o momento em que se aprende o nome exato de um cheiro.
No sebo da rua estreita, o vendedor reconhece o leitor pelo gesto de passar o polegar na lombada, num movimento de medir a temperatura. Ele procura algo que ainda não sabe nomear; encontra uma edição marcada a lápis por uma desconhecida de outro tempo. O sublinhado, em grafite pálido, diz apenas: “não esqueça”; a margem devolve uma data quase apagada e um ponto de exclamação tímido. Ele fecha o livro por um instante; ao abrir de novo, a cidade parece deslocada meio centímetro. Ler faz isso: desalinha de leve o mundo e, ainda mais, quem o lê.
Numa escola pública, a professora lê em voz alta num ritmo que o corpo das crianças aprende. O ventilador rabisca o teto, o cheiro de giz sobe; as carteiras formam pequenas ilhas e, quando ela acerta a linha, a turma vira um só corpo, uma corrente inaudível. Ali o fenômeno é discreto: cada criança deixa no gancho a versão que veio pela manhã e experimenta, pela metade, a roupa de um personagem que nunca viu. A roupa não serve de primeira; atrita, belisca; é nesse aperto que a mudança se costura.
No plantão do hospital, um enfermeiro lê três páginas entre uma medicação e outra; a noite tem ruídos que só existem ali; o ar traz desinfetante e metal. Por três páginas ele esquece o peso do crachá e do relógio; por três páginas ele se lembra de uma praia onde nunca foi. Não é escapismo. É treino de atenção ao que não admite credencial nem controle. Ao fechar o livro, as paredes voltam ao lugar; sobra nele um depósito de sal e vento que ninguém verá, mas que decidirá a maneira de tocar o ombro do próximo paciente.
Em casa, uma mulher abre o livro perto da janela; o filho adormece no sofá, a chaleira canta baixo. Ela prometera a si mesma não chorar. Cumpre a promessa até a metade. Não é a história que a derruba; é uma linha que mede o silêncio por dentro. A leitura não traz respostas: traça perímetros; desenha o mapa do que se é hoje e do que, com sorte, já se deixou de ser. Quando fecha a capa, ainda é mãe, ainda é profissional, ainda é filha; e passa a carregar um acento adicional, um quase imperceptível deslocamento de sentido.
Quem frequenta bibliotecas sabe: o ar ali é mais denso porque carrega a poeira dos que já mudaram muitas vezes. Um homem de terno gasto consulta jornais antigos para remontar a história da própria rua; uma estudante fotografa uma página e depois outra, juntando peças para um dossiê. Em volta, as cadeiras rangem baixo, o papel tem cheiro de tempo. Ao lado, alguém sublinha o que logo esquecerá; mais adiante, alguém alcança o que não soube formular. O bibliotecário observa a coreografia com discrição; sabe de memória o lugar onde dormem os livros de quem chegou para não ser encontrado por ninguém.
A crítica tende a empilhar: prateleiras, caixas com nome, etiquetas alinhadas. O leitor, não. Transpõe sem pedir permissão, aceita a dúvida como se aceita a chuva, abandona o parágrafo quando ele pede pausa, volta ao mesmo trecho, à dobra de rua onde se ouviu, certa vez, um som inesquecível. Não há utilidade óbvia; é essa falta que torna o gesto necessário. Num tempo que mede tudo em velocidade, o leitor mede em espessura; em vez de avançar, aprofunda.
Há quem diga que ler é um luxo. Talvez. Há também a leitura, ferramenta de sobrevivência lenta: há dias em que uma sentença impede um grito; noutros, autoriza um riso. No metrô, metal rangendo e luz fria, um homem fecha o livro e, de repente, vê um rosto que lhe faltava; uma passageira termina um capítulo e, sem perceber, perdoa um erro escrito na própria caligrafia; um adolescente aperta no bolso a HQ dobrada, levando à quadra a coragem das onomatopeias.
Cada qual, ao seu modo, deixa para trás um pedaço do que era ao acordar. À noite, a cidade apaga o brilho das vitrines; o trânsito rareia, os cães latem mais perto, o asfalto devolve um calor raso, e a lua hesita.
Ele volta à primeira página para conferir se estava mesmo ali; estava, mas não foi isso que o transformou. Foi a frase tocando a memória; por dentro, a afinação muda meio tom e a respiração se desvia um grau.
Ela acende a luz do abajur e dobra o canto da folha; amanhã retoma, sabendo que algo terá morrido e outra coisa, indefinida, frágil, porém nítida, terá nascido. Ler é funeral mínimo e festa silenciosa; ofício paciente de despedir-se e receber-se de volta. Agora você já não é aquele.
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