Por que alguns indivíduos escrevem tão bem, ao contrário de outros? A escrita possui diversos graus de perfeição, e somente uma quantidade reduzida de ficcionistas e poetas consegue nos encantar com palavras, geração após geração.
É possível estudar a literatura, mas ensinar alguém a escrever é uma questão mais complexa e controversa. Oficinas literárias são agradáveis ocasiões sociais, em que um número reduzido de pessoas criativas se encontra para trocar experiências em um ambiente apropriado. Tais eventos contribuem para que a literatura continue a despertar interesse e, se possível, nunca desapareça de nossas vidas, com sua incessante oferta de “algo mais”. Podemos sonhar com isso. Mas é bastante discutível se oficinas literárias conseguem, de fato, resolver os problemas de pessoas até vocacionadas, porém incapazes de traduzir o que sentem. Há coisas que, infelizmente, não se transmitem de fora para dentro, conforme Machado de Assis bem sabia.
No conto “Cantiga de esponsais”, Machado refletiu sobre essa incapacidade sufocante narrando a história do maestro Romão Pires, que sonha em escrever óperas e missas, embora não consiga traduzir em notas um único canto esponsalício. A música borbulha em sua alma, mas “tudo lhe saía informe, sem ideia nem harmonia”. Por isso mesmo, Romão Pires tem um final de vida amargo e sem glórias.
Seria possível descobrir o segredo dessa primazia dos grandes poetas sobre os comezinhos, que acham que basta criar histórias e versos banais para ser chamado de “escritor”? Bloom, ex-professor de literatura da Universidade de Yale, Estados Unidos, investigou esse assunto por décadas e publicou vários livros dedicados ao mistério. Indo no caminho inverso ao de Roland Barthes (teórico da morte do autor), Bloom confere importância capital ao ficcionista. Diz isso expressamente em “Gênio”. Com efeito, estamos nos referindo não aos textos em si, mas primordialmente aos indivíduos de cujo talento emergem verdadeiras obras de arte. “Gênio” é um notável exemplo da crença na autoria, elencando 100 dos mais importantes nomes da literatura mundial.
O que é que São Paulo ou Eça de Queirós possui que excede o senso comum? Aqui a resposta são os “atributos divinos” conhecidos como Sefirot, dentro dos quais Bloom situa conjuntos de autores parecidos entre si. Mas é em “O Cânone Ocidental” que o crítico propõe cinco características menos esotéricas:
“A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui basicamente de uma amálgama: domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante”.
Se o efeito dessa amálgama sobre o leitor é similar à magia, os mecanismos que a produzem não são todos necessariamente inapreensíveis. Caso Harold Bloom esteja certo, tais mecanismos constituem uma parte importante do que chamamos vulgarmente de “dom”, embora a idiossincrasia — a meu ver indispensável quando se trata de originalidade e poder cognitivo — seja inapreensível por natureza. Afinal, idiossincrasia não é uma técnica que se aprende, mas uma qualidade do espírito. Em consequência, a relação que o crítico nova-iorquino propõe não é muito útil como lição de oficina literária. Caso contrário, bastaria a cada um de nós absorver a maioria dessas características para se tornar um ficcionista ou poeta razoável. Por mais que nos esforcemos, não é provável que isso aconteça. O que Bloom propõe visa somente compreender o fenômeno e explicar como, e por quê, certos escritores do passado tornaram-se imortais. E por que certos contemporâneos são, igualmente, candidatos a viver em nossa memória. Ele não conceitua cada uma daquelas características, mas podemos deduzir-lhes um significado razoável, sistematizando-as uma a uma, em ordem progressiva, segundo o grau de dificuldade. Também tentamos ilustrá-las com possíveis exemplos, citando trechos representativos de autores de nossa preferência. Vejamos cada uma delas:
O conhecimento humano não tem limite e pode ser de qualquer natureza: filosófica, científica, religiosa etc. Diz respeito ao acúmulo de informações que uma pessoa adquire, em termos gerais. É impossível escrever um bom romance sem conhecer, e até dominar, os diversos assuntos implicados na trama. Além dos temas centrais de uma obra, os grandes escritores conhecem bem a tradição literária (são grandes leitores), sem a qual não poderiam dialogar entre si e travar o que Bloom chama de “agon”, ou disputa pela imortalidade poética. Podemos supor que o conhecimento requer três coisas: curiosidade, estudo e experiência, condições básicas para o domínio da linguagem figurativa e, em certa medida, da dicção exuberante. Apesar de a curiosidade ser inata, informação pode ser apreendida, e suar a camisa certamente ajuda bastante quem quer escrever.
Um trecho ilustrativo de “conhecimento”, extraído de “Solar”, de Ian McEwan:
“Ele imaginara que bastaria desenvolver a base matemática para o desenho das pás, construir três ou quatro protótipos e testá-las no túnel. Entretanto, mais gente teve de ser contratada à medida que assuntos ancilares se infiltraram na agenda: vibração, ruído, custo, altura, cisalhamento do vento, precessão giroscópica, tensão cíclica, resistência do telhado, materiais, engrenagens, eficiência, integração com a rede elétrica, licenças de planejamento”.
O protagonista deste relato é Michael Beard. Ele é físico e está envolvido num projeto para desenvolver pás para turbinas eólicas. Os termos são técnicos, e é de pressupor que McEwan pesquisou sobre o assunto, talvez com engenheiros especializados. É pouco provável que este autor se interessaria por “assuntos ancilares” como “precessão giroscópica” e “cisalhamento do vento” se isso não fosse estritamente necessário para sustentar sua trama romanesca. Até aí, a literatura está ao alcance de qualquer um.
Refere-se ao vasto reino das imagens, tão caro aos poetas. As figuras de linguagem têm número significativo — metáfora, metonímia, sinédoque, ironia, metagoge, etc. — e podem ser conhecidas com o auxílio de um simples livro de gramática. Elas traçam a fronteira entre o discurso científico (objetivo e transparente) e o discurso literário (opaco, ambíguo), aberto a múltiplas interpretações. Para alguns, o domínio dos tropos é consequência do conhecimento teórico da linguagem. Decorreria, assim, do acúmulo de informação técnica. Para outros, não é suficiente sem “inspiração”: aquele estalo de clarividência que transcende o domínio puramente racional, mas que pode ser estimulado pela leitura e o conhecimento.
Um trecho de “domínio da linguagem figurativa”, extraído de “Verão”, de J. M. Coetzee:
“A casa em que ele mora com o pai é dos anos 1920. As paredes, construídas em parte com tijolos cozidos, mas no geral com tijolos crus, estão agora a tal ponto apodrecidas que começaram a esfarelar. Isolá-las da umidade é tarefa impossível; o melhor que se pode fazer é construir uma calçada de concreto impermeável em torno da casa toda e esperar que sequem aos poucos”.
Quem leu as três páginas anteriores de “Verão”, sobre a violência na África, não consegue deixar de pensar que esta casa, a casa em mau estado em que mora o narrador e seu pai, é uma imagem do continente africano. Pode parecer apenas a descrição de uma casa arruinada, mas também pode ser uma eficiente metonímia criada pelo autor, capaz de transfigurar o texto e, infelizmente, é fácil de passar batido pelos sentidos de um leitor menos arguto — ou de um candidato a escritor menos sensível.
Esta é a característica de mais imediata sensibilidade, ao entrarmos em contato com o texto literário. Se um escritor não prende o leitor já no primeiro parágrafo, possivelmente é porque sua dicção é banal. Dicção é a forma interessante de escrever um verso, uma frase ou um período (do que, afinal, são feitos os romances, as peças e os poemas), juntando-os até concluir um livro inteiro. Ela tem relação direta com o ritmo, a cadência, a musicalidade do texto. Para os ouvidos, o resultado é o que chamamos de beleza. É talvez a zona de transição entre a informação (conhecimento, experiência pessoal, gramática) e a arte, tornando as coisas mais complexas para o aspirante a poeta.
Um trecho de “Madame Bovary”, de Flaubert, que exprime “dicção exuberante”:
“Mas era sobretudo à hora das refeições que ela já não aguentava mais, naquela salinha do andar térreo, com o fogo fumegando, a porta rangendo, as paredes cheias de salitre, as lajes úmidas; toda a amargura da existência se lhe afigurava servida no prato e, ao fumegar do cozido, saíam-lhe do fundo da alma outros suspiros de tédio. Carlos era vagaroso para comer; Ema distraía-se mordendo avelãs, ou então, apoiada no cotovelo, entretinha-se, com a ponta da faca, a fazer riscos no oleado da mesa”.
Eis uma daquelas frases gostosas de se ler. Convidados a escrever esse trecho, autores comuns dariam pouco valor às palavras exatas, porque não as pesariam. Deixariam, assim, de obter um quadro psicológico completo, a partir de uma simples cena doméstica de onde o mestre francês extraiu preciosas analogias, criando um todo orgânico. Quantas sugestões em choque, na pena de Flaubert!, inclusive sugestões premonitórias, para descrever o tédio conjugal de Ema Bovary! A proverbial fixação de Flaubert pela frase precisa era plenamente justificada: se a ficção não possui dicção de ficção, é porque ainda não atingiu o patamar de arte. Milhares de romances são lançados todo dia, quase todos com dicção banal.
Estamos aqui no sutilíssimo terreno da percepção e da intuição. Próximo da sabedoria, o poder cognitivo surge no texto como bolhas de reflexão filosófica, entremeio à narração, à descrição e ao diálogo. Não se trata de conhecimento adquirido, como nos casos anteriores, e sim de idiossincrasia: a voz do autor apossa-se do personagem, passando-se por ele. É algo fortemente inato e não assimilado de fora para dentro, característica inexistente nos livros ruins. Seria a capacidade pessoal e intransferível de penetrar a fundo a natureza humana, suas paixões e motivações. Sem esse recurso interior, é impossível construir personagens moral e psicologicamente verossímeis (grandes escritores são também grandes psicólogos). Exceto provavelmente o poder cognitivo e a originalidade (sinais do gênio, por excelência), as demais características podem ser aprendidas em cursos e livros.
Um trecho de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, para “poder cognitivo”:
“O que mais o preocupava, e em que muitas vezes pensava, era a razão por que todos os crimes são tão facilmente descobertos, bem como a pista de quase todos os criminosos. Chegou a diversas conclusões curiosas. No seu modo de ver, a principal razão do fato consistia menos na impossibilidade material de ocultar o crime do que na própria personalidade do criminoso, num grande número de casos, este experimentava, na ocasião do crime, uma diminuição da vontade e do entendimento, e era por isso que procedia com leviandade pueril e uma negligência extraordinária, quando mais necessárias lhe eram a precaução e a prudência”.
Todo grande escritor revela empatia, que é a capacidade de se identificar com outras pessoas, e aqui, mais do que nunca, autor e personagem se tornam um. Raskólnikov, através de Dostoiévski (narrador onisciente), dá-nos um exemplo relativamente simples de poder cognitivo na forma de penetração psicológica, quando a mente do personagem se desnuda perante nossos olhos. Muitos escritores tentam, mas nem todos são tão exatos assim, visto que nosso poder de análise é variado e, na maior parte das vezes, pobre. A ficção onde tais bolhas emergem, se forem convincentes, aumenta as próprias chances de se tornar memorável. Mas a maioria dos livros simplesmente não tem essas bolhas, mostrando que seus autores não têm a poderosa idiossincrasia dos gênios.
Bloom e Ezra Pound concordam que a originalidade (ou invenção) é a qualidade máxima do gênio. Como não existe originalidade absoluta, podemos saltar adiante sem polemizar. (Bloom até criou um conceito baseado no contágio: a “angústia da influência”, da qual nenhum leitor compulsivo escapa). A originalidade reflete a capacidade de um escritor para criar novos estilos e processos linguísticos, e é uma das fontes do “estranhamento” do leitor, diante do inusitado. Casos extremos, mas ilustrativos: o gênero biográfico seria criação de Santo Agostinho, o ensaio, criação de Montaigne, e o romance moderno, criação de Cervantes. Trata-se, nesse sentido, de inteligências estruturantes, que subvertem a ordem para instaurar uma nova maneira de escrever. Certamente o conhecimento dos tropos favorece a originalidade, mas ela é fortemente idiossincrática e tende a criar as próprias regras. É o cume e a consumação do gênio.
Um trecho de “Ulysses”, de James Joyce, para “originalidade”:
“Eu afirmaria que o solo ficava bem graxo com adubo cadavérico, ossos, carne, unhas, ossário. Horripilante. Tornando-se verde e rosa, decompondo-se. Putrefeitos rápido em terra úmida. Os velhos esmirrados, mais resistentes. Então uma espécie de sebenta de uma queijinonjenta. Então começa a pretejar, melaço porejando deles. Então secados. Mortitraças. É certo que as células ou o que quer que sejam continuam vivendo. Transmutando-se. Viver praticamente para sempre. Nada do que se alimentam, alimentam-se a si mesmas”.
Eis a prosa característica de Joyce repercutindo a mente do senhor Bloom, durante o velório de um certo Martin Cunningham, e outra vez testemunhamos a fusão entre autor e personagem. Além de cognição, aparece aqui um estilo novo, baseado no fluxo da consciência, brincalhão, fragmentário e muitas vezes assintático, que fecundou boa parte dos escritores do século 20, entre os quais William Faulkner e Guimarães Rosa.
As frases ilustrativas de Flaubert e Dostoiévski são particularmente parecidas e poderiam ser trocadas, visto que tanto uma quanto a outra contêm dicção exuberante e poder cognitivo. Não é raro que isso aconteça porque, normalmente, as características referidas se entrelaçam. Acrescentaríamos às cinco características propostas por Harold Bloom uma sexta, indispensável à ficção: a capacidade de fabulação, sem a qual não existem histórias. Um autor incapaz de fabular escreverá apenas fragmentos, insights circunstanciais, e não universos com começo, meio e fim.
Suor é, obviamente, um dos ingredientes indispensáveis aos grandes autores, mas não parece ser o bastante em face da natureza nem sempre clara de outras exigências, talvez inefáveis: inspiração, epifania, seja o que for. Em larga medida, esse algo inefável é exigido, e apenas uns poucos artistas conseguem conciliar o obscuro mecanismo desencadeador com as técnicas necessárias ao apuro formal. Alguém que manifesta apenas uma das características propostas por Harold Bloom não poderia se tornar um grande escritor. É preciso conjugá-las sempre ao máximo. Assim, uns têm conhecimento, mas não poder cognitivo (é um mero erudito); outros têm poder cognitivo, mas não têm domínio da linguagem figurativa (é psicólogo, mas não escritor). Outros conhecem os tropos, mas não sabem criar (neste caso, teríamos um simples acadêmico, mas não um poeta). E assim por diante.
O verdadeiro artista começa a germinar quando há um processo de conjugação entre essas características numa mesma personalidade. Uma delas pode gerar apenas um escritor medíocre; duas, um escritor ruim; três, possivelmente um bom escritor. Teoricamente, o gênio é a soma de todas.
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