O palco respira. Cabos enlaçados em molas discretas, um copo d’água intocado, o microfone em vigília. Uma mulher avança, tênis gasto, ombros firmes, camisa larga. Primeiro ataque, seco; as respirações se alinham. A plateia inclina o corpo, o chão treme fino, a luz desenha mapas na pele. A voz raspa e sobe, sem enfeite, sem cerimônia. O rosto contrai, o riso corta, um clarão espeta a noite. No centro, Cássia Eller: presença exata, pudor fora de cena, tempestade em cena.
Cabelo curto, riso torto e generoso, olhos que pesam o silêncio. Fora do palco, reserva; no palco, dedicação total. A cada música, uma decisão. O corpo canta junto, músculos convocados, o grave instalado no peito. A brincadeira convive com a batalha. Ela erra, ri, recomeça com mais peso. O gesto não finge. A plateia reconhece de imediato a crueza, a precisão que não pede anúncio. Apenas acontece.
A história veio de longas mudanças, casas trocadas, uniformes novos, malas no corredor. Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Santarém no Pará, outra vez Rio, e então Brasília. Em pátios de escola e corredores de quartel, aprendeu a ler as pausas. Na adolescência, um violão virou abrigo e ferramenta. Bares de esquina, conversas cortadas por acordes, repertório formado por necessidade. O ouvido acolheu de tudo: rock, samba, baladas de rádio, rasgos de blues. Em Brasília, coros, experiências de estúdio, percussão pesada, atenção a arranjos. Na segunda metade dos anos 1980, redemocratização recente, fitas-cassete trocadas, festivais estudantis cheios, rádios abrindo espaço. Brasília fervia. Entrou devagar, sem aviso, e logo estava no centro da sala.
O timbre grave abriu caminho. Contradições à vista, francas. Androginia à vontade, despojamento sem cartilha, um pudor teimoso que recuava na primeira frase. Amigos falam do riso fácil, da impaciência com formalidades vazias, do cuidado no bastidor. Músicos lembram a escuta concentrada, um aceno curto com o queixo. Repórteres anotam que ela explicava pouco; preferia o violão. A entrevista terminava e, horas depois, ainda havia violão no colo; afinava e testava posições até encontrar o acorde certo.
A estrada engrossou no tempo das fitas-cassete e do rádio noturno. O primeiro disco abriu fresta; o segundo deu o tranco; os seguintes consolidaram uma mão de intérprete exigente. No intervalo, o palco volta a respirar, breve, como quem guarda fôlego para o próximo ataque. Vieram encontros que mudaram o rumo. Renato Russo expandiu caminhos: compôs “1º de julho” e aproximou repertórios. Cazuza e Frejat mudaram o clima. Com Nando Reis, lapidação de ateliê: canção por canção, paciência, risco, camaradagem. Releituras ganharam casa nessa voz. “Por enquanto” ficou solar e melancólica; “Malandragem” entrou direta, com afeto; “Relicário” soou íntima e coletiva, efeito raro: a sensação de que a música reconhecia cada pessoa pelo nome.
A linguagem do corpo assinava tudo. Descalça, às vezes. O pé marca o tempo. As mãos batem no peito, no violão, no ar. Tronco em arco tenso. Nada ornamental. Guitarra firme; voz que sustenta o desenho; olhar que puxa a plateia para o centro da luz. As interpretações praticavam força quieta. Pausas que convidam à respiração conjunta. Arranques breves, perigo medido. A plateia seguia junto, atenta ao chão.
Nos bastidores, vida sem moldura pronta. Amor vivido com discrição e coragem, parceria leal, maternidade inteira. Francisco no colo, nos estúdios, adormecendo entre cabos e risos. Em casa, rotina possível: panela acesa, visita breve, ensaio de última hora. Em mesa de bar, conversa franca, zero paciência para etiqueta. Em entrevista, desconforto, preferência pela música. Francisco cresce e vira Chico Chico, compositor de pulso firme; o timbre guarda um grão da mãe, o caminho é dele. Entre os grandes da geração, premiado, indicado, ouvido com atenção. Quando toca, a lembrança não pesa; amplia. A vida segue nessa casa onde som é assunto de família.
Os anos 1990 se reconheceram naquele corpo de trabalho. Salas de estar acesas, ruas inquietas, uma geração tentando caber. A redemocratização já não era novidade, ainda doíam ecos de censura. As gravadoras ainda mandavam; o MP3 batia à porta. MTV no auge, rádios reprogramadas, capas de revista disputando espaço com uma internet adolescente. Cássia passou por essa encruzilhada com combinação rara: apelo amplo e radicalidade de intérprete. Em festival, bar miúdo ou auditório de TV, o mesmo eixo. Nada negociável. A voz chegava inteira, disposta ao risco do ao vivo; à catástrofe miúda da nota que escapa e se resolve. Na virada da década, a encruzilhada tinha endereço.
A consagração chegou inteira. O “Acústico MTV” foi gravado em 7 e 8 de março de 2001, em São Paulo, e lançado em 5 de maio. A câmera aproximou o timbre; arranjos depurados deixaram a palavra exposta. Sala de estar acesa, televisores atentos, o país ouvindo de perto. Não houve alarde, houve atenção. Nesse registro, Cássia fixou lugar de referência. Planilhas de venda e prêmios contam uma história; a memória guarda outra: sofá de domingo, impacto contido, a descoberta de que o peso podia ser leve, que a ferocidade cabe em sussurro. Poucos meses antes, no Rock in Rio III, em 13 de janeiro de 2001, o alcance popular ganhou dimensão de festival, céu aberto, coro maciço.
Na técnica, firmeza. Contralto apoiado em respiração estável, ataque seco, dicção que corta a sala. Recuava para que a palavra aparecesse; avançava quando a palavra precisava queimar. O repertório obedecia a uma seleção rigorosa. Sem enfeite. Escolha, trabalho, insistência. A banda a tomava por guia; o público, por farol. Canções de Nando ganharam casa naquela voz; letras de Cazuza e Frejat correram por outro corredor; Renato reencontrou ali um romantismo duro, sem polimento.
A manhã de 29 de dezembro de 2001 trazia sol de verão e ar parado. A notícia não gritava, cortava. Cássia tinha trinta e nove anos. Telejornais em repetição, locutores com a voz baixa, rádios tocando as mesmas faixas; no ônibus, jornal dobrado no colo, olhos vermelhos. No velório, fila que dobrava a esquina, flores simples, amigos cantando baixinho. Ficou registrado: infarto agudo do miocárdio, paradas cardíacas. O resto, poeira. No começo de 2002, o amparo ganhou letra oficial: Maria Eugênia com a guarda de Francisco; em 31 de outubro, a tutela definitiva. A casa seguiu de pé. O país andou devagar por uns dias. Quem colocou o disco naquela noite ouviu a mesma voz e, pela primeira vez, sentiu o peso da ausência.
Desde então, o legado habita estúdios, quartos, fones de ouvido. Novas cantoras encontram rota possível. Bandas reaprendem sinceridade de palco. Jovens escutam e veem coragem, postura, delicadeza bruta. Professores levam a voz para a sala; a curva que essa voz abriu na canção popular fica visível ali. Tributos se multiplicam, documentários abrem arquivos, regravações se espalham. Nenhum gesto substitui presença. Fica o modo como a canção encostava no corpo de quem ouvia: consolo que provoca, provocação que consola.
As músicas resistem pelo detalhe. Vibrato curto marcando verso difícil. Respiração funda antes do refrão. Consoante final batida com intenção. Riso involuntário ao tropeço de um acorde. Convite ao público para mais uma tentativa. Esse mosaico se lê sem legenda. O retrato que circulou em jornais envelheceu menos que as páginas. Olhar hoje para aquela foto devolve um tempo em que a canção popular encarou o próprio rosto com franqueza e humor. Cássia deu forma a esse rosto e deixou riscos que não saem.
É possível contar a história pelas cidades. Rio, início de sal e concreto. Belo Horizonte, esquinas humanas, plateias por perto. Santarém, calor largo que molda a escuta. Brasília, vento seco que afia a dicção, ensaios de garagem, vozes jovens. Depois, Rio de novo, gravações, shows, noites que não fecham. Cada lugar acrescentou experiência e cansaço. Estradas ensinaram o peso do equipamento, o valor do técnico que chega cedo, a comida fria de bastidor, o abraço curto antes da entrada. Fica o ofício. Ela sabia; ria. E seguia.
Quem a viu de perto guarda um instante. Um olhar que captura e acalma. Uma fã em pranto que recebe um copo d’água em vez do gesto automático. Um músico inseguro trazido para a frente. Um técnico exausto ganhando cinco minutos e um agradecimento sussurrado. Nada retórico, só atenção. A beleza miúda do cotidiano em torno de uma voz grande. A vida dava rumo ao trabalho; o trabalho devolvia a vida com juros.
Quando as luzes baixam, o palco respira de novo. Cabos recolhidos, setlist amassado, a marca dos tênis na madeira. O microfone fica no centro: em pé, em silêncio. A casa se desfaz devagar. Um país volta para casa com o ouvido aceso. As gravações permanecem ao alcance de qualquer fone. Novas vozes estudam as mesmas entradas. A escuta continua.

