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Ela foi a primeira mulher a vender 100 mil discos de samba. Venceu a fome e o machismo. Morreu aos 40 anos, de forma absurda

No fim de uma tarde de 1983, o Brasil reteve a respiração até doer; na Gávea, a Clínica São Vicente guardava passos curtos, cheiro de éter, lã de algodão úmida sobre o metal, boletins dobrados no bolso da camisa, e o ar-condicionado de parede soprava um frio raso que não apagava o odor dos desinfetantes; no rádio, locutores aparavam sílabas e prolongavam a margem da frase enquanto uma notícia aguardava nome; era o penúltimo ano da ditadura, com a abertura em gotejamento, a inflação rondando a mesa de jantar, greves retomando esquinas, a televisão organizando o relógio doméstico, gravadoras do eixo Rio-São Paulo comprimindo catálogos até quase impedir quem chegava do terreiro; havia uma mulher de branco, contas junto à pele, respiração afinada ao couro grave, presença que dava ao estúdio seriedade de terreiro, e “Canto das três raças” reacendia na memória o ponto onde orgulho e ferida ocupam a mesma página; a notícia saiu da portaria, correu por antenas de alumínio, entrou em cozinhas com panela em fogo baixo, alcançou oficinas, ônibus de última hora e salas de aula, e cada casa sentiu o teto baixar um palmo, porque na madrugada de 2 de abril a voz de Clara Nunes recolheu-se e deixou no país uma batida nova, daquelas que puxam o peito para dentro antes de permitir que a vida, com decoro, retome o passo.

A história começa em 1942, em Paraopeba, Minas Gerais: uma casa de trabalho e de cansaço em que a música repartia o domingo e aplainava a noite; eram anos de guerra, com a “Rádio Nacional” acesa na sala e notícias percorrendo o mapa até a mesa de madeira; a menina treinou a voz contra o pregão da feira e contra o vapor do ferro, cantou no banco da igreja, depois no pátio, até que o corpo firmasse um registro próprio e esse registro lhe desse morada; no final dos anos 50 a televisão iluminou janelas, nos 60 os catálogos de multinacionais ganharam peso, e o golpe de 1964 instalou tesouras que alteraram letras, agendas e repertórios; junto do aparelho que aquecia a casa com seu zumbido, ela ensaiou palcos que ainda não existiam, enquanto o mercado se fechava no Sudeste e o país aprendia a negociar memória com espetáculo, e nesse trajeto a menina ergueu uma voz capaz de guardar a rua e preservar o decoro da casa.

A juventude indicou o Rio e cobrou o risco como pedágio; a cidade, acelerada por obras e promessas, levantava fachadas às pressas e deixava para trás quartos vazios, enquanto generais regulavam a praça e a televisão; o palco, entretanto, preservava uma margem indócil, e o samba, encaixado em horários dóceis, perdia arestas fora da grade; Clara entrou pela porta de serviço e ficou: quadras, mesas de compositores, tardes em que o couro do tambor ensinava o fôlego antes do microfone; ali a voz assentou e, com ela, um desígnio nítido, afirmar um Brasil profundo sem caricatura, com cadência de terreiro e rigor de estúdio, para que a batida do povo não precisasse pedir licença ao relógio.

Vieram LPs, a rotina de estúdio e a roda que prossegue quando a câmera apaga; o timbre límpido abria espaço com autoridade mansa e, no recorte, havia um recolhimento de altar; as canções aproximaram parentes distantes, a praça da Portela, a lembrança de um povo que leva seus deuses no corpo, dores viradas do avesso até virarem voz; chegou o marco industrial, primeira mulher do samba a ultrapassar 100 000 cópias, cifra vistosa que hoje funciona como rastro de época; o que permanece são escolhas à lupa: grave de couro um passo à frente, agogô em linha visível, metais contidos para deixar o couro falar, coros posicionados para sustentar a palavra; letras que chamam a história pelo nome e não pedem licença ao horário doméstico; “Canto das três raças” oferecido sem exotismo, com dignidade e pulso, para que o país reconheça a si mesmo no primeiro compasso.

Em cena, o branco atuava como farol e promessa; as contas roçavam a clavícula, os colares marcavam passagem, e os atabaques chamados pelo nome nos versos deixavam orixás audíveis na própria dicção; essa presença, repetida sob luz quente de estúdio e câmera de tubo, manteve aberta, diante do país, a casa das religiões de matriz africana; o preço veio em fila, preconceitos, insinuações, editoriais maldosos, convites retirados, risos de canto de boca, e a resposta foi postura, elegância firme nas tardes de domingo, inclinação mínima de cabeça antes da entrada, microfone tratado com decoro; meninas e meninos negros encontraram espelho nesse gesto contínuo; naquele retângulo treinado para amansar, o palco televisivo recebeu rito, e o branco deixou de fantasia para afirmar compromisso, signo que devolvia à audiência o direito de se ver com dignidade.

Havia posicionamento, embora a palavra rareasse nas entrevistas; nos anos 1970, vigiados e cortantes, a sobrevivência exigia coreografias discretas, setlists ajustados na véspera, letras aparadas para passar pela tesoura, declarações medidas em estúdios que preferiam neutralidade; Clara escolheu cantar o Brasil de frente e com cor plena, recuando da palidez da época e trazendo para o centro feridas históricas que a plateia conhecia de corpo, escravidão, exílio, saudade transformados em chamada de presença; por trás da festa havia eixo, dignidade como critério, e o público o reconheceu não por slogans, e sim por sinais continuados, saudações de rito antes da primeira nota, escolha de compositores que afinavam história e pulsação, respiração firme entre estrofe e refrão; ao subir ao palco, ela demonstrava a serenidade de quem mede a própria voz em gramas e não em decibéis, e a cada canção devolvia ao país a possibilidade de se escutar sem baixar os olhos.

O Rio a reconheceu pelo nome nas esquinas; nas quadras, repetia-se a figura, passos que respeitavam o terreiro, ausência de firula, preferência pela cadência, e a voz chegava com dicção redonda, sustentada por uma pulsação que não cedia ao atropelo; o canto vinha com percussão no corpo, surdo marcando o eixo na altura do diafragma e pandeiro respondendo de raspas curtas, porque no samba decide o corpo inteiro alinhado ao compasso; sob luz amarela de refletor, Clara cumprimentava a guardiã do estandarte, escutava o diretor de bateria, trocava uma palavra com o músico de base e chamava o técnico pelo nome antes de pedir a primeira nota; essa ordem de respeito, repetida noite após noite, dava chão ao espetáculo e, sem anunciar grandeza, elevava o conjunto, gesto que prende o público pela raiz antes que a melodia comece a subir.

Na intimidade havia persistência: caderno aberto com anotações a lápis, fita marcada em bobinas largas, a lâmpada vermelha do talkback acesa enquanto ela pedia “mais surdo no fone” e voltava ao início; se a afinação escorregava meio fio, recomeçava; se a respiração encurtava, ajustava o compasso do peito ao do pandeiro; parceiros recordam decisões secas e gentis, mão firme sem levantar a voz; para ela, cantar era esticar o tempo até que a sílaba encontrasse morada; no estúdio, VU no amarelo por opção, sopros contidos para que o couro respirasse, silêncio pedido com o olhar antes do take valer; na televisão, marca de fita no chão, câmera de tubo em 3/4, microfone recebido como objeto de decoro, um gesto mínimo alinhando a banda à sua entrada; quando chegava, o ambiente perdia ruído e ganhava eixo, e essa simplicidade aparente era o rastro do trabalho que já vinha de horas, afinando cada detalhe até que a canção parasse de tremer.

Clara Nunes: voz que vestiu o branco, afinou o samba com raízes e deixou um compasso eterno no peito do Brasil

Na primeira semana de março de 1983, passada a ressaca do carnaval, Clara deu entrada na Clínica São Vicente para retirar varizes, operação de rotina anunciada sem alarme, e recebeu anestesia geral; o corpo respondeu com violência rara, o coração vacilou, veio a reanimação, instalaram aparelhos, instaurou-se o coma, e os dias começaram a somar-se com a lentidão que fere; do lado de fora, o fim do verão prendia o ar nas ruas, rádios tocavam “Nação”, bilhetes se acumulavam na portaria, flores chegavam com recados de voz emprestada; por dentro, as últimas semanas tiveram luz baixa, passos contidos e mãos que, ao tocar o lençol, pediam força em silêncio; na véspera, o quadro oscilou entre esperança e cansaço, e a madrugada entrou pela janela com cheiro de jardim depois da rega; pouco antes do sábado nascer, 2 de abril, os instrumentos afrouxaram suas cifras, a respiração assistida perdeu cadência, e o monitor se acalmou de vez; então a notícia saiu da Gávea e percorreu antenas, lajes e cozinhas, enquanto o país, acordado, entendia que aquela mulher de 40 anos, que ensinara cadência à festa e decoro de cena, deixava um pulso contido que ainda hoje organiza o peito antes que a vida prossiga.

A despedida encheu a cidade de presença: o velório seguiu para a quadra da Portela, em Madureira, estandartes erguidos, coroas abertas, saias azuis e brancas rodando junto do surdo, rezas curtas entre palmas longas no centro do piso; emissoras suspenderam quadros, rádios costuraram um bloco de canções, vizinhanças ouviram pela janela com o rádio apoiado no batente; depois, o cortejo desceu a serra urbana até o Cemitério São João Batista, em Botafogo, e o silêncio ali teve densidade de batida contida, maior que qualquer samba de avenida; o país a chamou Santa do Samba, reconhecimento de que aquela voz havia alargado o que cabia no palco e no cotidiano de quem a escutou, honra que não depende de altar, apenas de memória que permanece em serviço.

Com os anos, o rastro dela abriu veredas: cantoras jovens encontraram caminho e passaram adiante com corpo inteiro, microfone à altura do queixo, saias rodadas e colares que a câmera não cortava; a presença feminina no samba ganhou largura e espinha, e os repertórios passaram a incluir pontos, ijexás e ladainhas com arranjos que traziam o surdo adiantado no plano, o agogô a traço fino, os metais em meia-luz para que a palavra respirasse; palcos aceitaram outro porte, turbantes na luz principal, pés que batem o tempo sem pedir autorização ao relógio, e raízes afro-brasileiras foram afirmadas com naturalidade, sem verniz exótico; o legado mede-se menos em vendagens e mais na cena repetida de estúdios onde se escuta o tambor antes do efeito, de encontros em que Bahia e Rio trocam salves sem disputa de holofote, de letras que devolvem nomes à história e, por isso, fazem a música assentar no peito com respeito.

Clara interessa viva: artista em andamento, caderno de capa gasta com anotações de mestres visitados em Salvador, Recife e Madureira, noites de roda para ouvir toques de ijexá, congo e partido-alto, manhãs de estúdio em que decisões redesenhavam o som, grave de couro adiantado, agogô em filete contínuo, cordas em pizzicato quando a palavra pedia relevo, sopros medidos deixando a sílaba tomar ar; a seleção de repertório foi minuciosa, com compositores escolhidos pelo encontro entre história e pulsação, e a inteligência de palco, gesto reduzido, pausa que prepara o ar, entrada na respiração exata da bateria, mantém o fio esticado até depois da última nota, quando a sala ainda segura o fôlego e ninguém se apressa a quebrar o silêncio.

Passadas décadas desde 1983, a cidade ainda guarda a tarde em que o rádio falhou em dizer o nome e o país aprendeu a ouvir uma falta; o que veio depois também está na memória do som, Diretas nas ruas, redemocratização trêmula, auditórios de domingo mandando no humor da sala, a indústria trocando rotação e suporte, e, apesar disso, o pulso que ela afinou continuou servindo de régua; hoje, quando uma cantora ajeita o microfone à altura do queixo e decide pelo grave de couro adiantado, quando a câmera não corta colares e um ponto pede passagem no centro do palco, há um rastro que liga essa decisão à mulher de branco que tratava repertório como dever de nomear; a cena final não se encerra no cemitério, repete-se toda vez que uma menina negra entra no estúdio sem baixar os olhos, toda vez que um arranjo dá espaço à palavra antes de pedir brilho, toda vez que uma roda de samba interrompe o riso para saudar quem veio antes; o país mudou de governo, de moeda, de formato de disco, de grade de televisão, e ainda assim, ao cair da tarde, quando o calor encosta nos azulejos da cozinha e o rádio de hoje, seja ele qual for, toca “Canto das três raças” ou “Conto de areia”, o peito reacerta o andamento e entende que certas vozes não partem, passam a trabalhar do lado de dentro, sustentando telhados invisíveis, regulando a altura da chama, ajustando a cadência da frase até que a vida, com decoro, retome o passo.



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Redação

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