O cinema juvenil adora repetir a fantasia de que o talento é uma espécie de passaporte universal, capaz de abrir portas seladas por séculos de hierarquia social. A história de Tyler Gage (Channing Tatum), jovem branco da periferia de Baltimore que encontra na dança uma improvável via de ascensão, parece feita sob medida para reafirmar essa crença confortadora. Em “Ela Dança, Eu Danço”, os obstáculos existem apenas para que o protagonista prove sua aptidão extraordinária, como se o mundo real estivesse à espera de alguém com o passo certo para finalmente reconhecê-lo. Essa narrativa envolve, seduz e, ao mesmo tempo, anestesia: elimina as contradições que sustentam a desigualdade e transforma injustiças profundas em meros desafios individuais de superação.
A Maryland School of Arts funciona como uma espécie de microcosmo da elite cultural. Lá, a disciplina é institucionalizada, o prestígio define o valor de cada corpo e a criatividade só é bem-vinda quando não perturba o equilíbrio das tradições. A chegada de Tyler a esse ambiente funciona como ruptura controlada. Ele não questiona a estrutura, não tensiona privilégios, não reivindica espaço político: apenas aprende a performar um tipo de arte que o tornará palatável aos detentores de legitimidade. O filme desenha a periferia como caos e a escola como purificação. A mensagem implícita é simples: só há redenção quando o sujeito se afasta do seu contexto de origem.
A parceria entre Tyler e Nora(Jenna Dewan), a bailarina destinada a triunfar, reforça essa lógica. Ela carrega todas as credenciais do mérito culturalmente valorizado: técnica, disciplina, projeção familiar, enquanto ele traz o “frescor” da rua, elemento bruto pronto para ser lapidado. A fusão entre hip-hop e ballet é celebrada como encontro entre mundos, mas a integração é ilusória. O estilo urbano é absorvido, higienizado, utilizado como tempero para revitalizar uma instituição que permanece intacta. O filme esvazia tensões raciais e sociais ao reduzir a cultura negra a instrumento de renovação estética para corpos já legitimados.
Tyler só se torna digno de atenção quando demonstra utilidade concreta para Nora. Antes disso, sua existência é tratada como problema administrativo: um jovem que precisa ser corrigido por meio do trabalho imposto. O roteiro trabalha com uma lógica moral bastante frequente em narrativas de mobilidade: o indivíduo ganha valor quando pode ser lucrativo, inspirador ou conveniente para as estruturas que o marginalizam. A comunidade à qual ele pertence, marcada pela precariedade, pela violência e pelo abandono, só entra em cena para reforçar o contraste com o destino “superior” que o aguarda fora dali.
Há, ainda, uma romantização evidente da delinquência juvenil. Roubo, vandalismo e impulsividade aparecem como comportamentos quase naturais, justificáveis por um ambiente hostil, mas facilmente superáveis com disciplina artística. O filme neutraliza qualquer discussão séria sobre política pública, racismo ou negligência estatal. O problema não é estrutural: é falta de foco. A superação individual ocupa o lugar das responsabilidades coletivas. A dança funciona como solução milagrosa que dispensa reflexão crítica.
A trilha, a coreografia e o carisma dos protagonistas cumprem papel central nesse mecanismo de persuasão. O espetáculo é eficiente em disfarçar as simplificações narrativas. A energia das sequências de dança, especialmente nos momentos em que o hip-hop parece liderar o movimento, cria a sensação de que estamos diante de uma revolução simbólica. Contudo, ao final, o que se altera de fato? A escola mantém sua lógica seletiva; a periferia permanece um espaço descartável; e Nora continua a representar o ideal legitimado pelo sistema que nunca precisou se adaptar para acolher quem vem de fora.
A tragédia que atravessa a vida de Skinny (De’Shawn Washington), o amigo mais jovem, não provoca reflexão transformadora. Serve como alerta para Tyler: se ele não seguir o caminho do talento reconhecido, será engolido pela mesma miséria que condena os demais. A mensagem é dura e simplista: alguns sobrevivem porque dançam bem; quem não tem “dom” está fadado a desaparecer. O filme evita sentir o peso moral dessa afirmação. Em vez disso, premia o protagonista com uma redenção que só existe porque ele se encaixa na fantasia meritocrática vendida como libertação.
Mesmo quando aposta na ideia de que a arte pode unir realidades distintas, o filme limita esse encontro à dimensão estética. Não há negociação de privilégios, não há deslocamento de poder. O intercâmbio cultural se dá por assimetria: Tyler dá autenticidade à escola; a escola dá status a Tyler. A estrutura não é questionada, apenas ornamentada. A promessa de democratização cultural se dissolve na constatação de que o hip-hop só recebe holofotes quando serve ao palco tradicional.
Essa narrativa agrada porque simplifica questões que, no cotidiano, geram desconforto político. É mais fácil acreditar que basta dedicação para ascender do que confrontar a rigidez de um sistema que protege seus beneficiários. ”Ela Dança, Eu Danço” organiza os conflitos de forma a produzir um sentimento tranquilizador: a desigualdade pode ser superada individualmente e, portanto, não há urgência em transformações coletivas.
Ainda assim, o filme conquista público porque oferece um ideal irresistível: o talento como salvação. Não importa se a sociedade é desigual, se o Estado abandona os jovens da periferia, se o racismo determina trajetórias antes mesmo do nascimento. Na lógica da narrativa, basta um protagonista dançar bem para que o destino se reverta. Essa esperança sedutora, mas enganosa, garante que a história funcione como entretenimento, ainda que à custa de esvaziar o peso da realidade que inspira sua premissa.
O encanto do espetáculo não precisa ser negado; é legítimo se emocionar com cada passo coreografado, com o entusiasmo do palco final ou com a breve sensação de que o mundo pode recompensar quem ousa sonhar. O que não se pode ignorar é o pacto ideológico que sustenta esse prazer: a arte aparece como portal de fuga, mas esconde que apenas alguns recebem a chave. Em Baltimore, e no mundo que o filme confortavelmente evita encarar, dançar não basta para sobreviver.
Filme:
Ela Dança, Eu Danço
Diretor:
Anne Fletcher
Ano:
2006
Gênero:
Crime/Drama/Romance
Avaliação:
8/10
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Fernando Machado
★★★★★★★★★★

