Há algo de curioso, e talvez irônico, em ver Harrison Ford, o rosto mais confiável do cinema americano dos anos 80 e 90, mergulhar num thriller cujo título sugere fervor nacional, mas cuja essência é o oposto: a fragilidade daquilo que se pretende proteger. “Jogos Patrióticos” não é apenas um filme comercial de ação, é uma parábola sobre a ilusão de segurança que sustenta o cidadão médio norte-americano, essa crença confortável de que o lar, a família e o país formam uma tríade impenetrável. O filme, porém, trata de desmontar essa ideia com a precisão de um tiro certeiro: o inimigo vem de fora, sim, mas o verdadeiro pânico nasce dentro, na vulnerabilidade exposta.
Jack Ryan, vivido por um Ford em seu auge de solidez moral, é o herói idealizado da América civilizada. Ex-analista da CIA que trocou a adrenalina pela docência, ele representa o sonho do retorno à normalidade. Mas o acaso o arranca dessa bolha ao interromper um atentado terrorista em Londres, um gesto quase instintivo que o torna o alvo de uma vingança pessoal. A ironia é que Ryan é punido justamente por fazer o que o cinema patriótico sempre celebrou: intervir. A partir daí, o herói se vê obrigado a retornar à guerra, não por vocação, mas por sobrevivência.
Phillip Noyce, um diretor australiano habituado à tensão política, entrega aqui um filme que equilibra a narrativa de ação com uma atmosfera quase paranoica. Não há o glamour da espionagem à la Bond, mas uma crueza cotidiana, quase doméstica. O inimigo, um jovem terrorista do IRA interpretado por Sean Bean com olhar de fúria contida, não é uma caricatura, mas o espelho distorcido do próprio Ryan: um homem movido por convicções inabaláveis. A diferença é apenas a direção do ódio. A vingança, de ambos os lados, torna-se o combustível de um ciclo que o filme jamais tenta justificar, apenas exibir, como quem observa uma ferida aberta.
O roteiro, baseado no romance de Tom Clancy, sofre com as compressões típicas das adaptações: o enredo político é simplificado, as motivações se tornam mais lineares e o contexto do conflito norte-irlandês é tratado com certa superficialidade. Ainda assim, há algo de instigante na maneira como o filme contorna suas limitações, concentrando-se menos no terrorismo e mais na intimidade ameaçada de uma família. Anne Archer, como Cathy Ryan, e a pequena Thora Birch formam o núcleo emocional que dá peso às cenas de suspense. Quando a violência invade a casa, esse espaço que o cinema americano sempre tratou como inviolável, “Jogos Patrióticos” alcança seu ponto mais potente.
Há, no fundo, um desconforto que o filme talvez não tenha intenção de provocar, mas provoca: o patriotismo aqui é o disfarce da impotência. Ryan defende sua família com a mesma obstinação com que a América defende sua ideia de si, uma crença emocional, quase infantil, na própria inocência. E, no entanto, o que o filme mostra é um homem que mata, teme, foge, hesita. O herói clássico dá lugar a um pai vulnerável, e é nesse deslocamento que o filme encontra sua autenticidade.
Noyce, ao contrário de muitos diretores do gênero, não transforma a ação em espetáculo vazio. Seus planos são secos, tensos, quase cirúrgicos, como se quisessem evitar o prazer do heroísmo. Mesmo o confronto final, previsível em sua estrutura, carrega um peso ético: não há triunfo, apenas alívio. O mal é contido, mas o medo permanece.
Rever “Jogos Patrióticos” hoje é reencontrar o retrato de um país que ainda acreditava que podia controlar o caos. A guerra ao terror ainda não havia se tornado permanente, e o herói americano ainda acreditava que bastava “voltar ao trabalho” para restaurar a ordem. Mas o filme, talvez sem saber, antecipa o século 21 um tempo em que a moral se torna ambígua, a fronteira entre casa e campo de batalha se apaga, e o patriotismo se revela menos como virtude e mais como distração.
”Jogos Patrióticos” é eficiente, tenso e, acima de tudo, revelador. Não da política que o inspira, mas da psique que o sustenta, essa necessidade desesperada de crer que ainda há algo puro a ser protegido, mesmo que o próprio ato de proteção seja o que destrói.
Filme:
Jogos Patrióticos
Diretor:
Phillip Noyce
Ano:
1992
Gênero:
Ação/Suspense
Avaliação:
8/10
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Helena Oliveira
★★★★★★★★★★

