No hospital de Santa Teresa, a janela deixava entrar um vento ralo e a cortina ia e voltava até cansar. Sérgio Sampaio tinha o rosto afilado, a pele colada ao lençol áspero, a máscara marcando o nariz. A mão subia devagar, parava no meio do caminho, caía. A luz do teto ignorava canções; ao lado, o oxigênio batia um tempo que ninguém escolheu. Dentro dele, uma sala de memórias acesas a meia-luz: cabos, palcos, um refrão que já moveu ruas e agora cabe inteiro entre os lábios e a máscara. O peito trabalha curto. O olhar procura um ponto fixo e não encontra. O Rio segue lá fora. Aqui, a voz resiste, e dói resistir.
Antes do Rio havia Cachoeiro de Itapemirim, 1947 no calendário, quintal de pedra e água, sala com discos empilhados, conversas que esticavam a noite. Um pai que conduzia bandas amadoras e afinava instrumentos na cozinha, uma mãe de livros, caderno e cuidado. No rádio de mesa, chiado constante, locutores em passo apertado; e, aos quinze, ele já estava do lado de dentro: locutor da ZYL-9, a emissora AM da cidade, prefixo oficial que identificava a rádio no país. Microfone quente, vinheta na hora certa, respiração medida para caber no anúncio. A palavra, ali, deixou de ser apenas palavra; ganhou corpo de música e ficou guardada, sem alarde, na gaveta certa.
No fim dos anos 1960, ele desceu no Rio com uma mala curta e um violão gasto que cheirava a viagem. Pensão na Lapa, parede fina, café ralo, cadernos sem título empilhados perto da janela. Cantou em balcões de tampo pegajoso, voltou no dia seguinte mesmo sem o dinheiro do ônibus. Numa noite de ar morno, Raul Seixas parou à distância, escutou duas estrofes, aproximou a cadeira. Pediu que repetisse uma canção, pediu outra, o riso acendeu num verso e apagou no seguinte, ficou só o olhar atento. Anotou, no verso de um guardanapo, a hora do estúdio. No dia seguinte, sala pequena com abajur quente, fita rodando, o violão batendo no peito em compasso curto; duas tomadas, uma conversa baixa sobre cortar uma sílaba, deixar a pausa respirar; a voz no ponto em que a palavra aceita cair. Raul saiu com a certeza guardada no bolso.
Em 1971, vieram as gravações de “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10”, um LP de estúdio da CBS concebido por Raul com Sérgio Sampaio, Edy Star e Miriam Batucada. É uma montagem de canções e vinhetas, gargalhadas rápidas costurando críticas de costume, alegria nervosa servida em faixas curtas, tudo registrado em microfone próximo, respiração audível. Lojas cautelosas, divulgação tímida, plateias entre o espanto e o riso. O disco foi parar num catálogo sem lugar, fósforo aceso dentro do bolso; luz pequena que continua queimando quando a mão esquece.
No ano seguinte, no Maracanãzinho, o Festival Internacional da Canção de 1972 abriu o palco para as luzes altas, para as câmeras em giro, para o país inteiro do outro lado. Ele levou uma marcha, “Eu quero é botar meu bloco na rua”, e cantou sem pedir aval. O compacto correu pelas rádios, atravessou as esquinas, entrou pelas janelas de cozinha. Em 1973, chegou o LP de capa marcante e de letras que mordem e afagam, com um Brasil assobiando enquanto procura o nome no rótulo. A cena seguia sob a ditadura, com pareceres carimbados em tinta roxa cruzando a mesa, enquanto um verso voltava ao remetente com duas palavras riscadas. A marcha ficou, o refrão ficou na boca do país, e a voz permaneceu guardada em poucos ouvidos atentos. O restante, ainda sem a plateia grande, esperou a sua vez.
Em reunião de repertório, ar-condicionado alto e copos suando, ele tocou duas faixas no violão. O produtor alinhou as canetas, ouviu inteiro, elogiou a rima que corta de lado, depois pediu algo “que circule no almoço”. Um executivo devolveu a fita dentro do próprio silêncio. Sérgio Sampaio ficou com o desvio: gosto pela mistura indócil, uma melodia que encontra ternura por dentro da farpa, ironia de borda fina e uma batida que prefere confidência a espetáculo. Nos bastidores, maldito começou a circular como atalho. Cabia em pauta, cabia em cochicho. Ao redor, o mercado encolheu; por dentro, a obra reteve a sua teimosia.
Em vez de inventário, cenas de estúdio. Uma tarde de 1976, sessão de “Tem que acontecer”: sopros marcados a lápis, ele pede retorno ao segundo verso, o técnico aproxima o ouvido do falante, o arranjador sinaliza com a mão. A lâmpada aquece, a cadeira range, o copo de água fica intocado por três tomadas. 1982, gravação independente de “Sinceramente”: família por perto, dinheiro contado, fita recém-comprada, alguém confere o rolo com cuidado de joalheiro; ele busca a vogal no ponto em que não fere tanto e ainda fere. O relógio de pulso avança, e o que interessa acontece entre uma respiração e outra, quando a palavra enfim encontra o lugar exato.
A estrada foi minguando. Numa pensão em Copacabana, depois em outra, havia quartos com cheiro de guarda-roupa aberto, paredes muito finas, vizinhos invisíveis. Em bares de luz incerta, eram oito pessoas numa terça, quinze num sábado, às vezes quatro. Uma senhora pedia “a do bloco”, ele atendia com gratidão e, por dentro, guardava as outras, aquelas mais fundas, que quase ninguém conhece. Falavam de álcool, de noites compridas, de contas atrasadas; em vez de justificativa, permanecia a vida posta no papel. No caderno de pauta, a mão riscava e voltava, setas e rasuras, frases que paravam no meio e reapareciam noutra linha. Enquanto o país agitava a vitrola das novidades, ele afinava o violão, sentava, insistia.
Nos anos 80, com as praças cheias e as palavras menos vigiadas, a televisão montava o seu cardápio de músicas com régua e horário. Sérgio Sampaio preservava o próprio diapasão. Nas reuniões, pediam “o clima do refrão” e ele tirava do bolso um bolero ferido, um samba de esquina, um blues que falava baixo. A engrenagem do mercado repetia fórmulas; ele lapidava desvios de detalhe, ironia no ponto, rimas que soam inevitáveis desde o começo. Para uns, erro; para outros, graça. Ele seguiu sem anúncio, atravessando a cidade por ruas laterais, e ainda chegando.
Na Bahia, já nos anos 90, houve um recomeço breve. Itapuã, bairro de praia em Salvador, trouxe outro vento pela janela. Vieram os shows na capital e nas cidades da volta, os cadernos cheios, as vozes de ensaio em fita cassete. Os amigos ficaram por perto, os parceiros tiveram paciência, e o álbum foi sendo desenhado em conversa de cozinha, com o repertório escrito em papel pautado, títulos seguidos de pequenas setas. O copo de bebida cedeu lugar à água e à vigília. No bloco de anotações, o relógio estava marcado a lápis, dois horários por dia, e o silêncio depois. As sessões inteiras não aconteceram. Ficaram os fragmentos ainda quentes, as promessas de timbre, as ideias acesas no escuro.
Maio de 1994 não começou de repente. Meses antes, em cadernos já gastos, havia horários a lápis, duas janelas por dia para compor, e um esforço paciente para manter o corpo no eixo. As caminhadas eram curtas; a noite, mais curta ainda. O copo ficou afastado da mesa, e a voz passou a ensaiar em volume baixo, quase um segredo. Amigos ajudavam a organizar fitas, rascunhos, telefones de estúdio anotados no verso de contas. Na semana derradeira, a dor instalou-se no abdômen como peso contínuo. No quarto, ele sentava na beira da cama, o violão encostado à parede, e testava acordes de memória. As refeições ficaram miúdas. O sono, quebrado. A esperança, teimosa.
Na véspera da internação, a cidade parecia distante. O telefone tocou duas vezes, combinaram uma visita que não aconteceu. Um bloco ficou aberto sobre a mesa; no alto da página, um título provisório e uma seta. Pela manhã, o táxi subiu até Santa Teresa. O hospital recebeu um homem muito magro, o rosto sério, o olhar que media o ar. Na sala branca, o som do oxigênio marcava o tempo. Os médicos falaram de pâncreas inflamado, de cuidados urgentes. Ele fechou os olhos e ouviu dentro da cabeça uma cadência guardada, a batida da marcha que não se apagava. Pediu água. Pediu silêncio. Em certos momentos, levou a mão ao peito, guardando uma última sílaba para a gravação que não viria.
Os dias seguintes foram feitos de visitas curtas, passos contidos no corredor, vozes baixas que evitavam promessas. Uma amiga trouxe um casaco; um parceiro de música falou de um arranjo que ainda pedia sopro; alguém lembrou de um show marcado para dali a meses e parou no meio da frase. À noite, a janela deixava entrar o barulho do bondinho e um vento frio. O corpo cedeu devagar. A mão procurou o apoio do lençol e achou apenas tecido. Houve uma madrugada mais dura, uma manhã mais clara, uma última tarde em que a respiração se tornou pequena e, no entanto, insistente. Aos 47, a voz parou de lutar. O que ficou na sala foi o ar, e um zumbido leve de máquina que nada sabia do resto.
A notícia saiu sem alarde. Os jornais deram notas breves. O enterro foi curto, com poucas coroas, passos reduzidos, um silêncio que parecia respeito e também cansaço. Pessoas próximas cantaram versos de memória, errando uma palavra aqui, acertando outra ali, e ninguém se importou. Os discos foram empilhados num canto, as fitas guardadas em caixas, os cadernos fechados com cuidado. No ônibus da tarde, três vozes pegaram o coro sem olhar para ninguém; na capa amarelada do LP, o nome do autor desapareceu na dobra. Naquela noite, a cidade dormiu cedo. Em algumas casas, a canção ficou acesa mais um pouco.
Depois da morte, a maré virou devagar. Em 1996, no palco do Circo Voador, o concerto Balaio do Sampaio reuniu amigos e admiradores de escolas distintas, um coro que não pedia perdão para o afeto. Em 1998, o tributo ganhou vinil e CD, e aquelas faixas saíram do circuito miúdo e encontraram novas casas de som. Em 2006, “Cruel”, garimpado por Zeca Baleiro e parceiros, tratou as vozes de ensaio com arranjos atentos à linha em que a dor respira sem exibicionismo. Dali em diante, uma estrada póstuma: universidades, pesquisadores, coletivos independentes, cantores jovens, uma rede silenciosa que cuida e repassa, e que acende de novo a luz que ficou.
A comparação com o conterrâneo famoso continua a latejar. Roberto Carlos, também de Cachoeiro, ergueu décadas de televisão, especiais de fim de ano, um repertório que o país reconhece ao primeiro acorde. Sérgio Sampaio percorreu as salas pequenas, os contratos que evaporam, os momentos altos sem colchão comercial. A questão não pede que se derrube um para erguer outro; pede que se observe como se distribuem a escuta e o prêmio. Ele ofereceu um canto áspero e delicado ao mesmo tempo, um arranhão que ilumina. Pagou por isso. E há quem tenha aprendido a cantar ao encostar a voz nesse fio.
Críticos atentos apontaram cedo a solda precisa entre bolero, samba, choro e blues, feita sem cartaz. Notaram a dicção que desloca o peso de palavras triviais, o riso que deixa a ferida à mostra, a pausa que nasce de necessidade respiratória e de sentido musical. O timbre levemente raspado, as vogais alongadas no limite da respiração, as consoantes que pousam sem estrondo. Longe do horário nobre, essas canções escolheram outro tempo: o das descobertas lentas, de quem volta ao disco e encontra um frescor áspero, um país menos diagramado dentro de três minutos e pouco.
Se isso virasse novela, a pulsação se perderia. A biografia pede detalhe: o pó de palco depois do bis, o técnico recolhendo os cabos, a luz do bar voltando ao tom comum, alguém pagando a conta e esquecendo a caneta. Pede também a moldura do tempo: nos anos 70, folhas devolvidas com tinta roxa sobre letras de canções; nos 80, a engrenagem fonográfica pedindo repetição; nos 90, os gostos reorganizados nas estantes de sala. Sérgio Sampaio atravessou esse percurso com um repertório curto e essencial, um olhar que encontra ternura no limite do precipício, um humor que consola e morde na mesma linha.
Voltar ao hospital, então. A cortina ainda batendo. O enfermeiro entra, ajusta a máscara, sai. Na mesa de cabeceira, nenhum jornal do dia. Na cabeça, linhas de melodia pedindo passagem sem alarde. O caderno de capa azul, guardado numa caixa de sapatos na casa de um amigo, mantém folhas com cifras interrompidas, rimas em fuga, setas que não chegam. Há páginas que param no meio da palavra e não voltam. Isso também responde.
Numa outra parte da cidade, o rádio fica ligado na cozinha; alguém lava a louça, aumenta um ponto o volume, canta o refrão sem pensar, assobia torto e ri sozinha. Na casa ao lado, um rapaz abre o violão, procura uma harmonia que ainda não fecha, insiste, repete, volta. Anota num papel uma linha que lembra Sérgio Sampaio sem escrever o nome. Aos poucos, vai se formando um país miúdo de ouvintes cuidadosos. Não vira manchete, mas sustenta o que importa.
Ele dispensou estátua e legenda. Basta um bar de cadeiras tortas, um cantor novo que puxa uma faixa de outro tempo, quinze na plateia, duas pessoas realmente atentas, e a frase desce inteira, do jeito em que foi inventada. A marcha atravessa o calendário sem olhar para a data. As outras faixas, sem avenida, encontram a porta da cozinha, o corredor de eco curto, a casa em que o relógio aperta, gente que precisa de música sem blindagem e encontra.
Se alguém exigir conclusão, não há. Há vestígios: o ensaio de uma ponte numa fita perdida, o rascunho de uma rima que muda de rumo na última linha, a fotografia estourada de um palco no interior, quatro mesas, um copo, duas palmas. Há um país que cantou o refrão e guardou o nome no bolso, esquecido dentro do casaco. Há também quem, à noite, sozinho, escute com atenção essa voz que não pede licença. O bloco passa outra vez, sem alarde; por um instante a janela do quarto abre para a rua; depois fecha. Fica o chiado. Fica o canto. E a noite, demorada, aprende de memória o que não quer esquecer.